Há muitos anos, no secundário, acordei de um sono profundo a meio de
uma aula quando me encontrei com a Ode Triunfal. Tinha passado de batucar indolentemente
com os dedos na mesa a folhear com eles o livro do colega de carteira, como se
passando as páginas conseguisse fazer passar os minutos, os longos minutos que
demorava a passar a aula de Português.
Depois do longínquo ronronar das coisas abstractas, cuja anatomia indistinta
era dissecada na mesa de um jargão técnico estéril e cuja relação com a vida
neste planeta eu não lobrigava, o livro estava a oferecer-me um texto que
ligava as palavras a sensações, que descrevia com assinalável verosimilhança o
mundo e o relacionava com emoções que eu era capaz de identificar.
Havia uma discrepância entre o que eu estava a ler e o que tinham sido as
aulas de Português até àquele momento, fastidiosos lapsos de tempo onde, sem
que eu tivesse como o perceber (e de qualquer modo os professores, eles mesmos,
não o percebiam), o ensino da literatura se fazia distinto, quase antagónico,
da literatura. Imaginei que aquela ode de Álvaro de Campos seria um dos textos
que não iríamos abordar na aula,
porque tudo o que abordávamos na aula era chato e colossalmente destituído de
humanidade. Senti-me transgressor. A insuflar a alma de uma coisa que não era
grosseira, amarelada e, para mal das alergias, carregada de pó como velhos
in-fólios. (Anos mais tarde concluiria com naturalidade que o que me condenava
ao sono ou ao tédio não eram os textos, mas quem os ensinava e a forma como
eles eram ensinados.)
Creio que vem desse momento epifânico a minha aversão a romances que
tenham como protagonistas escritores em pleno exercício do ofício, que sejam
estudos psicológicos, existencialistas ou pós-modernos de escritores ou de leitores,
bibliotecários, editores, a minha aversão a romances que sequer ambientem vagamente
os enredos no métier literário, que
procurem piscar o olho ao leitor geek, profissional, ou que pura e simplesmente desconheçam a vida para lá da literatura. Há
bastantes destes livros, os escritores tendem a ser umbiguistas e a literatura de
alguns deles, com a conivência ou o deslumbramento de editores igualmente
autocentrados, francamente tautológica.
Receio sempre que os autores de obras assim sejam como os meus professores
do secundário, gente que tuteia a literatura mas a esvazia de vida. Salvo
excepções, quando quero ler sobre vidas de escritores ou sobre o escritor no
seu labirinto, procuro biografias, entrevistas, ensaios próprios ou de
terceiros. Dos romances, da literatura, espero que tratem da vida, até mesmo da
vidinha. Do roncar das máquinas aos «escrocs exageradamente bem vestidos».
*Este post cita de cor e dando-se
muita liberdade um texto que escrevi há talvez década e meia e foi espoletado,
o post, pela admirável versão da Ode
Triunfal que a Maria Filomena publicou no seu Ferramentas e Espelhos.
lembro-me desses tempos. :)
ResponderEliminarparece que queriam que não gostássemos de livros...