«Mário foi o
primeiro a chegar. Acordou com o dealbar do dia. Na verdade, quase não dormiu,
sentia demasiada excitação. Estar ali era como ter congeminado um teorema e
ser-lhe oferecida depois a oportunidade de o testar e demonstrar ele mesmo. Já
tinha um nome para aquilo, passou a noite com ele na cabeça: Teoria Geral do Verão. Basicamente, a
sua ideia postulava que não havia felicidade na chuva, no vento, no frio, nos
dias cinzentos e ensimesmados. O estio era o quinhão de paraíso que Deus legara
à Terra, um vislumbre do que esperava na outra vida os bons, os justos, os
impolutos. Era talvez também a manifestação do Seu sadismo, permitia-se Mário
pensar, já que Ele sabia como falhara com o homem. Desvelar o paraíso era como
mostrar imagens de fontes e lagos suíços a um moribundo no deserto africano ou
deixar um suculento naco de carne meros centímetros fora do alcance da corrente
de um cão esfaimado.
Tinha havido
alguns erros no desenvolvimento humano, no seu desenvolvimento biológico. Havia
tanto que aprender com aves, répteis, insectos. A selecção natural falhara ao
fazer do homem um animal sedentário. Não tardaria a perceber-se porque definhava
a civilização ocidental, por que é que o Hemisfério Norte se fazia triste e
evitava reproduzir-se. Por que se suicidavam os nórdicos (por enquanto eles).
Séculos de saber acumulado e ainda não havia uma solução para o mal-estar. E
era tão simples: migração sazonal ou hibernação.
Lembrava-se de
um episódio: dois casais de patos a esvoaçarem sobre uma albufeira. Talvez não
fossem dois casais, podiam ser quatro machos ou quatro fêmeas, ou três de um
género e um do outro, quem saberia dizê-lo? Era um daqueles dias de Outono
apelidados de perfeitos, um dos que se rejeitariam na Primavera ou no Verão
(demasiado frios e cinzentos, com o maldito nevoeiro a ameaçar cobrir tudo) e
que pela sua pouca dureza seriam ignorados no Inverno, mas que, com um fundo de
folhas coloridas e uma promessa de lareira, pareciam irrepetíveis. Mário estava
com o pai e lembrava-se de o ver subir a gola do casaco ao mesmo tempo que
falava de castanhas assadas e vinho tinto. Ali, ao seu lado, trinta anos antes,
com a elegância enfiada num fato de três peças e camisa branca, o cabelo
submetido pela brilhantina, o pai de Mário explicava que o pato selvagem era
uma espécie rara naquelas paragens e a lagoa era apenas uma estação de serviço
onde eles se detinham para abastecer no caminho para África, para terras mais
quentes. Mário a tremer de frio e desconforto, insensível à beleza outonal,
invejou a inteligência dos patos.
O europeu era
intrinsecamente estúpido: rumava a sul no Verão e procurava a neve no Inverno,
quando o que devia estar a fazer era aprender com as aves, descer uns quantos
paralelos à medida que os dias diminuíam e regressar logo que as plantas
ameaçassem florir. Claro que este tipo de migração em massa enfrentava
obstáculos severos, por mais que os serviços de turismo do Magrebe esfregassem
as mãos. As grandes deslocações de Estaline não tinham ficado bem vistas (mas
essas não incluíam bilhete de volta); contudo, pondo de parte a engenharia
social, ainda havia a biologia, a hibernação induzida. Se o homem, no seu longo
percurso evolutivo, recusara um metabolismo como o dos ursos, estava ainda
muito a tempo de se reencontrar por via científica com esse ramo da família. O
que não se pouparia em recursos se a Europa adormecesse no Inverno. E o que se
ganharia em felicidade social se todos saíssem do quarto apenas em Abril ou Maio,
quando o Sol mostrava finalmente músculo.»
in Aranda
Sem comentários:
Enviar um comentário