Gostaria de poder dizer que sou um daqueles procrastinadores que o
filósofo John Perry considerou “produtivos”, aqueles que enquanto adiam
indefinidamente uma tarefa realizam muitas outras igualmente importantes. Não
sou. A não ser que se considere importante resolver sucessivas colectâneas de
Sudoku Master.
A minha pilha de livros para ler só não aumentou porque desde que há
crise quase não tenho comprado livros. Em contrapartida, a minha pilha de
livros por escrever aumentou consideravelmente. Não porque ande a coleccionar apontamentos
de ideias para romances ou ensaios (o sudoku não me deixa tempo para isso), é
só a idade a acumular-se sem que daí resulte obra.
Para bem da minha sobrevivência física, sou tecnicamente incapaz de
procrastinar no emprego (qualquer coisa genética, herdei do meu pai isso e a rabugice).
É só ao chegar a casa que adopto o hedonismo pessoano de ter um livro para ler
(ou escrever) e procrastinar. A coisa está tão grave que já não compro o Público ao fim-de-semana, como antes, por
causa do Ípsilon, da Fugas ou da 2, mas porque é nesses dias que saem os sudokus de maior grau de
dificuldade (que naturalmente me farão perder mais tempo).
Nem me posso defender dizendo que a ginástica dos números me foi
prescrita pelo meu intelectual trainer:
passar a noite naquilo não me põe mais ágil na tabuada (continuo bastante dependente
da calculadora) e definitivamente não acordo com a mente mais preparada para as
obrigações do dia. Procrastinar por interpostos sudokus é antes um vício tão
alienante como a coca. O hábito poderia ter-me sido prescrito, isso sim, pelo
meu psicanalista, com o intuito de me fazer limpar a mente depois de dias
intensos de trabalho (como faz o resto dos portugueses, submetendo-se ao brainwashing da TV). Ou melhor: a
sudokumania é coisa que recomendariam no Conde Ferreira ou no Magalhães Lemos:
terapia ocupacional para distrair os malucos de fazerem maluquices. Sim, que disparates
não teria eu escrito se não tivesse passado o Verão a preencher números em linhas
e colunas?
Quando terminei de escrever Os
Idiotas (que, a propósito, fez sexta-feira um ano e é a única razão para
ter escrito este post), senti que
tinha finalmente atingido a maturidade, estava pronto para ser o Wallace
português (ou o Franzen, pronto*). Mas senti também que a probabilidade de
falhar nisso era muito, muito grande. O sudoku, temo bem, é apenas um dos meus álibis
para não arriscar falhar.
Sudoku faz bem à cabeça, ajuda a prevenir a demência. Mas talvez já chegue, não? Não estará na altura de voltar a visitar as raposas, as termas, as palavras?
ResponderEliminarAguardamos.