«Já
ninguém lê o Tio Patinhas no Verão e
não sei bem o que fazem os putos no Verão. Talvez ainda joguem às cartas, mas
para o Patinhas já não têm tempo.
Fico às vezes a vê-los, todos iguais, como clones saídos de uma máquina que
tivesse sido inventada para fazer face à crise demográfica. O mesmo cabelo
cuidadosamente despenteado, os mesmos ténis de marca, as mesmas t-shirts, as
mesmas calças de ganga pré-rotas — porque eles já não rompem os seus próprios jeans, não os vestem durante tempo
suficiente para que eles se rompam, têm de os comprar previamente esgaçados. É
a geração MTV, diz-se. Mas pergunto-me se a nossa não era também uma geração
qualquer coisa — pós-punk, new wave,
dos primórdios do videoclip, ou ainda
não isso, a geração jornal Sete, algo
do género. Seja como for, quando se é adolescente sente-se uma necessidade
grande de copiar, e nem sempre se copia o melhor ou o mais adequado. Sabemo-lo
quando regressamos de uma desintoxicação e temos a certeza que vamos recair,
porque algures lá atrás experimentámos qualquer coisa que era imensamente fixe
mas trazia inclusa a receita da nossa destruição.
Os montes em
Aranda ardem com admirável regularidade e o vento percorre o vale como se
soprasse num túnel. Nessas alturas recebemos na cara o seu bafo quente,
impregnado de cheiros, e eu por vezes penso em corpos cremados, milhares de
fantasmas arrancados do solo, e é a energia deles que nos toca, são as cinzas
deles que vemos cair no chão da varanda, as suas memórias que nos visitam e
avivam as nossas.
Passaram três
carros particulares para o hipódromo, mas foi o táxi o que mais me intrigou. Um
perfil, um rosto, os cabelos ondulados. Era uma lástima que não pudesse
distinguir-lhes a cor, a cor dos cabelos, como tinha sido uma lástima deixar de
ver o casaco vermelho do Tio Patinhas, o dólman azul do Pato Donald, a camisola
amarela do Peninha, a laranja do Pateta, as penas verdes do Zé Carioca, toda a
paleta viva saída dos lápis de Walt Disney.
A cor era uma
das componentes das trips: voltávamos
às drogas também pelas explosões de cor, pelas cornucópias e espirais
psicadélicas, os abismos e túneis curvilíneos, labirínticos, os milhares de
cintilações e raios, um firmamento extático que a natureza não podia copiar,
porque com as cores vinham sensações físicas fabulosas, elas agiam como agulhas
na acupunctura, cada cor o seu prazer; e não havia tempo, ali, cronologia, era
um hiato infinito. Não tínhamos como saber que as visões fantásticas que
desfrutávamos eram o nosso próprio cérebro a explodir, os neurónios que
queimávamos, a fissão das sinapses. Andávamos nos ácidos e chutávamo-nos para
ver por dentro o fogo-de-artifício na nossa cabeça e não o sabíamos; o cavalo
era o bilhete que comprávamos para assistir ao vivo e em directo à
auto-destruição da mente.
Depois veio
uma tarde como esta, à varanda, Verão, a nostalgia benigna de mergulhar numa
aventura do Tio Patinhas. E as cores a esbaterem-se, a desaparecerem, como se
alguém tivesse escolhido a opção transformar
em escala de cinza do Photoshop. O universo Disney a preto e branco, como
algumas histórias em certas edições mistas. Mas não adiantava virar as páginas,
avançar ou voltar atrás até aonde havia cor; de repente toda a edição estava
descolorida, a própria capa, em papel brilhante, plastificado, era cinzenta.
Talvez não tenha
sido assim de imediato, talvez eu tivesse perdido as cores de forma
progressiva. Como o cabelo: não recordamos cada centímetro que ele cresce, mas
sabemos, na altura de o cortar, que um dia o tivemos curto. Ou, se formos
carecas, não recordamos a queda, mas a cabeleira que deixámos de ter. No
entanto, é desta forma que eu lembro as coisas, num momento o mundo era normal
e no seguinte parecia um filme do Frank Miller, redundante como um filme de
Frank Miller. A vida já era suficientemente soturna, não havia necessidade de
sublinhar o facto com o preto e branco. Eu percebo que os espectadores dos
filmes precisem de uma representação gráfica
da atmosfera para melhor entenderem a ideia, mas eu não era um espectador, não
observava de fora.
Acromatismo.
Havia os daltónicos, que confundiam o verde com o vermelho — coisa chata em dia
de derby desportivo ou quando se
esquecia a ordem das luzes num semáforo — e havia eu, um caso extremo e raro de
discromatopsia. Não era apenas estar na merda, olhar em volta e ver tudo
cinzento como num dia de chuva. Não era alucinação, supondo-se que há
alucinações descoloridas. Não era passageiro. As substâncias químicas têm
destas coisas, ninguém sabe muito bem o alcance dos seus poderes, como algumas
personagens da Marvel. Um dia salvam a humanidade de ameaças terríveis e no
seguinte caem em desgraça e destroem tudo aquilo em que tocam. Eu conhecia (e
apreciava) enredos destes — não contava era ser vítima de um deles.
Ruivos.
Adivinhei-os ruivos, aos cabelos que passaram na parte de trás do táxi. Tão
ruivos que evocavam os montes em chamas de Aranda e tão ruivos que me doía a
alma por não os poder já ver desta forma.»
Pedro, in Aranda
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