Recordo assim de repente Mainz como cidade irmã de outras imaginadas onde
o adro fronteiro à gare se reveste de uma anarquia lânguida, vagamente
ameaçadora ou repulsiva. Bandos esfarrapados de punks, com as suas repas coloridas
e hirtas, chocalhavam quando ali desembarcámos correntes de forçados e constituíam
uma pequena multidão de rebeldes ociosos, espalhados no lajeado cinzento e sujo
como focas gordas ou tartarugas trazidas pela maré com o lixo a uma praia
vulcânica. Sentados ou recostados como romanos em orgia, bebiam e derramavam as
suas cervejas enquanto lançavam por rotina insultos aos passageiros que, como nós,
ziguezaguevam por entre eles na direcção da paragem de táxis ou dos meandros do
centro urbano. Não é um bom cartão-de-visita de uma cidade, mas suponho que
ninguém se dá ao trabalho de ir até à Alemanha para acabar a apear-se do
comboio em Mainz. O acampamento punk não se monta quotidianamente ali para
assediar turistas, creio, mas para chocar os concidadãos burgueses e devotos do
trabalho que usam o comboio nas suas idas e vindas diárias para Frankfurt ou
para localidades próximas. De resto, a cidade, que até tem os seus encantos,
não precisa da estética punk para enjoar os visitantes: tem a cozinha, com salsichas
sensaboronas e puré de bata avinagrado, que se serve com um apfelwein menos entusiasmante do que um Fruto
Real que tivesse sobrevivido aos anos 80 e decidíssemos por estultícia arriscar
beber hoje.
Se contudo o viajante se dá, como nós, ao trabalho de ir até Alemanha
para acabar a apear-se no comboio em Mainz, não adianta ir fazer perguntas ao estabelecimento
tuga a dois passos da estação: ali deixam de falar português quando descobrem que
os entendemos. A alternativa é acreditar no casal simpático que nos aborda mais
tarde, vestido para ir ao teatro num fim de dia de Agosto, e que garante ter um
quarto vago, se no fim da peça ainda andarmos pelas ruas de mapa na mão e falhos
de abrigo. Em Mainz fica-se então a olhar para estoutro cartão-de-visita, um
pequeno rectângulo de papel que assegura serem os elementos do casal cientistas
numa universidade próxima, e, enquanto se continua a busca por hotel barato, entreolham-se
os viajantes perguntando-se se há alemães calorosos ou se um currículo
universitário distinto é atributo que os teutões julgam necessitar para seduzir
swingers meridionais. Como entretanto
escurece de vez naquela parte da cidade com arquitectura vagamente pré-Segunda Guerra Mundial, e como se levanta uma brisa de inquietação e preconceito, os viajantes
deixam de se sentir lisonjeados com a ideia de assédio intelectualizado e
passam a interrogar-se academicamente o quão sedutor poderia ser Norman Bates
para copycats germânicos. A imagem hitchcockiana
de uma faca no duche diverte os viajantes — e leva-os a optar por subir um
bocadinho a quantia que estão dispostos a despender por um quarto em Mainz. Alojam-se
naquele hotel que era antes bom de mais para portugueses temporariamente sem bússola
mas permanentemente sem dinheiro, trocando uma aventura literária por um
pequeno luxo capaz de aliviar o corpo e a alma. No moleskine anotei o
preço do hotel.
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