Dificilmente poderia viver com a humidade tropical, mas com a chuva e a
monção sim. No Vietname usei o tempo todo uma echarpe feminina enrolada e
empapada no pescoço e arrastava-me pelo território como um alucinado no deserto,
seguro de que se parasse desfalecia ali mesmo. O meu caminhar era como o de alpinistas
a 8 mil metros de altitude sem forças, oxigénio e discernimento, mas com aquela
motivação ou obsessão prévias que lhes concedem um caminhar de autómato, pondo
lenta e lunarmente um pé após o outro, mais como estertores em slow motion de morto do que passadas voluntárias
de vivo. Era assim eu naquela latitude, a deslocar-me em linhas rectas entre
duas sombras em vez de vaguear turisticamente pela paisagem; a olhar as coisas
pitorescas pelo canto do olho enquanto elas iam desfilando a meu lado como
noutra dimensão, sem nunca me deter para apreciar pormenores ou comentar particularidades;
anunciando com desespero homicida na voz que se parasse para fazer fotos ou me desviasse
do caminho da sombra fosse por que razão turístico-imperiosa fosse seria um
português suado morto, e não um ocidental vivo enriquecido pela viagem. Descobri
que nos trópicos tenho espírito de mula atrelada à nora: caminho porque tenho
de caminhar, remoendo pensamentos asininos, obstinados, sem nexo nem
finalidade, incapaz de parar depois de me pôr em marcha e impedido pelo jugo tropical
de gestos de revolta, de qualquer gesto, aliás, que não seja descolar um pouco
a t-shirt do corpo. Mudava de trajectória de vez em quando, é verdade que mudava,
se a companhia me reorientava os passos segurando-me pelos ombros como se faz a
um bebé ou ao tal autómato com pilhas Duracell e uma versão muito beta de GPS.
Por vezes também chocava com postes e paredes, e conseguia inflectir ou
contornar o obstáculo com a mesma destreza convulsiva das sondas robóticas em
Marte. As primeiras e mais primitivas, que se atolavam à terceira tentativa —
não sem o alívio que devem sentir os moribundos finalmente autorizados a fenecer.
Mas é da chuva que queria falar, não de como viro zombie em atmosferas de
30 ou mais graus e 100% de humidade.
Já fui feliz à chuva no Inverno, fazendo jogging ensopado como um náufrago escocês emerso do Loch Ness (e
portanto com razões para correr), fazendo trekking
com botas encharcadas que emitem barulhinhos ora constrangedores ora estupidamente
cómicos como dobragens de filmes porno (mas não suficientemente sugestivos para
um escroto alojado em boxers impregnados de chuva e frio), e, se recuar um pouco
mais na biografia, também já fui feliz no Inverno chegando como um pito a casa
vindo da escola com os pés enfiados em sacos plásticos dentro dos sapatos e pronto
para café com leite, torradas, luz de velas e livros de Júlio Verne.
Gosto de apanhar molhas, como se vê, mas como não sou um masoquista
indefectível, as minhas melhores molhas são as de Verão. Chuva quente é a minha
ideia de Paraíso. Debaixo de borrascas estivais tenho reminiscências do Éden,
como se cada cromossoma do meu ADN estremecesse de um prazer herdado de quando
a humanidade tinha guelras e dava as primeiras braçadas no aquaworld primordial. Debaixo da chuva de Verão, de virilhas
ensopadas, sinto-me feliz, purificado e nu como Adão e Eva. (Não duvidemos que
estas figuras bíblicas existiram, só que, ao contrário do que pensa a religião,
eram batráquios ou girinos sem nada pudendo a esconder.)
Mas se invoquei o tema chuva foi porque hoje me lembrei, não sei bem porquê, que uma das
vezes em que fui feliz estava encharcado até aos ossos na Alemanha. Não
encharcado e tremelicante como trabalhador meridional na suja neve teutónica,
mas encharcado e esfusiante como vagamundo munido de moleskine e optimismo.
Tínhamos descido do castelo de Stahleck, transformado em pousada da juventude e
sobranceiro à pitoresca aldeia de Bacharach, por sua vez ancorada à margem do
Reno. O Reno é ali o Douro da Alemanha, com os seus curiosos vinhedos de bardos
perpendiculares às curvas de nível, mas inebria um pouco mais. Não porque os
seus famosos brancos tenham mais teor de álcool, mas porque as suas paisagens
urbanas têm menor teor de mau gosto. Fosse como fosse, talvez viéssemos um
pouco tocados de Stahleck — tínhamos bebido um copo ou dois enquanto
assistíamos a um ensaio da banda da juventude ali hospedada e não nos pareceu
loucura caminhar os três ou quatro quilómetros para montante (até ao
ancoradouro de onde partia o barco que fazia a travessia para a estação na
margem oposta a tempo de apanharmos o nosso comboio para Coblença), mesmo que a
chuva começasse a cair com intensidade e os nossos impermeáveis tivessem sido
comprados na loja dos chineses que ficava no rés-do-chão do meu prédio em
Portugal. Subimos o Reno encharcados e eu feliz, de calções e a chinelar como
se a Alemanha ficasse abaixo do Trópico de Câncer, indiferente à distância e à
chuva. Recordo-me que fiquei ligeiramente aborrecido quando parou de chover e o
barco partiu a horas e vi que o nosso plano se iria cumprir, o que era bom, mas
já não, o que era mau, sob uma chuva que aspergia como se os deuses, de luvas e
galochas no seu jardim, se entretivessem a irrigar a felicidade dos homens.
Depois disso, fui então feliz à chuva nos arredores de Hué, viajando na
traseira de uma motoreta e agarrado ao meu oriental como Leonardo DiCaprio a
Kate Winslet (só que ele, o meu oriental, felizmente não largava as mãos do
guiador para abrir os braços à proa e era eu quem tirava os chinelos dos apoios
e levantava as pernas como se estivesse a vogar cinematicamente num Titanic meridional).
Nessa tarde tínhamos ido ver templos funerários e no caminho de regresso havia
ao longo da estrada telas de artistas plásticos, uma exposição de arte
contemporânea a céu aberto que se afogava por uma hora ou duas e depois secava
num instantinho, como tudo ali secava num instantinho excepto o meu suor.
Mais tarde fui ainda feliz à chuva em Roma, a correr para o metro acima
da Piazza di Spagna e a ter tempo de achar afinal pequena e banal a Via dei
Condotti que o guia dizia ser «a busy and fashionable street».
Em Paris não choveu, e eu que levava um kispo novo à espera de o
estrear com o mesmo ânimo pueril e inconfessável de quando, adolescente, vesti em
Agosto um kispo em segunda mão — herdado de um primo afastado e a cheirar a
essências que não eram o sabão rosa lá de casa —, pela primeira (e última) vez
impaciente pelo Inverno, só porque tinha caído uma chuvita de Verão antes da
missa.
Levava também, em Paris, o moleskine que me foi oferecido como ferramenta
de escritor mas que uso apenas para anotar despesas e coisas práticas.
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