«A minha mãe
nasceu num casebre com piso de terra e duas divisões, numa das quais vivia o
gado, uma vaca e um burro — suponho que há pouca originalidade nisto, disse eu.
Jantava com Leonardo num restaurante novo e gastei pouco tempo a estudar o
espaço, um japonês de asséptico minimalismo. É fastidioso tentar perceber o que
cresceu mais depressa, continuei, se a família se o número de animais, mas ainda
que ambas as expansões denunciassem uma certa prosperidade, isso não aproximava
a infância dela dos padrões mínimos de conforto que hoje reivindicamos, nem
acrescentou compartimentos à casa, à excepção de um telheiro sem paredes. Com oito
anos e três irmãos mais novos viu-se investida de responsabilidades maternais e
mandada diariamente para os montes atrás de uma pequena manada de vacas
indolentes. Não sei se há um momento limite para a salvação — se decidirmos considerar
que retirar alguém de um mundo rústico daqueles salva —, mas o resgate da minha
mãe aconteceu talvez um pouco tarde, deixando-a num limbo entre duas
existências. Não era demasiado tarde para alguma escolaridade, mas havia já uma
vida de memórias indeléveis, todas efectivamente marcadas na pele.
Leonardo
estava a gostar do peixe cru; eu aproveitava a minúcia que os hashi permitem para debicar como alguém
devoto de uma filosofia ascética. Andei muitas vezes pelo território onde ela
guardara gado, disse, mas só no fim senti ter incorporado um pouco daquela
experiência. Faltava-me, claro, a herança genética, e de todas as versões da
história a única que me penetrou com força foi a última, quando ela se despiu
de vaidades, de vergonhas, quando deixou de interpretar ou justificar a sua
própria vida e, solicitada pela velhice, apenas reviveu, com distanciamento, ou
talvez com alegria feroz, um conjunto de factos.
Creio que há
uma certa justiça na senilidade, dei por mim a dizer, em algum momento as
pessoas deveriam sentir-se livres para falar de si próprias e das suas vidas
sem o peso da moral. Claro que a minha mãe acreditava na vida depois da morte e
por sua vontade deixaria as confissões e os ajustes de contas para o outro lado
ou para a sua antecâmara, mas por vezes a biologia antecipa o alívio. A
degenerescência convidou-a a esquecer a religião e a tomar as coisas pelo lado
físico, brutal, que elas tinham representado para si. A destruição dos
neurónios começou por aquele punhado deles que se ocupava das conveniências.
Também para
mim era uma experiência inesperada, disse eu a Leonardo. Um ano antes de ela
morrer, era uma outra mulher aquela que eu levava a revisitar a aldeia na
montanha onde nasceu. O exercício do dever filial há muito deixara de ter
significado para mim, mas de repente aquilo revelava-se algo diferente.
Tomava-a pelo braço e sentia uma corrente de afecto, uma vontade de a abraçar e
de a beijar, o que passei a fazer com uma frequência que não punha em prática
desde a infância.
Também eu, por
razões diferentes, tinha entrado num estado amoral, ou pelo menos associal. Vais-me
censurar por dizer isto, disse a Leonardo, mas tive uma espécie de flirt com a minha mãe nos meses que ela
levou a morrer. Era algo que não nos estava vedado, não éramos consanguíneos, não
havia nenhum tipo de jurisdição sobre nós que não fosse pura convenção, e a
isso já não ligávamos, enlaçávamo-nos apenas, nas encostas da sua infância, ela
a achatar camadas de memórias e eu, galante, ao serviço da rapariga em que ela
se transformara.
Dançávamos,
porque, ao mesmo tempo que recordava cada uma das vacas que pastoreara, lhe vinham
memórias de bailes em que não participara, ou que aproveitara pouco. A dança
era, aliás, logo a seguir ao canto, uma parte fundamental da sua existência,
dizia-me ela e dizia eu a Leonardo. Achava-se uma tola por algum dia ter
sentido timidez, ligado às conveniências, dado prioridade aos deveres. Havia um
filme, como se chamava?, dizia a minha mãe, em que uma moça bonita cantava e
dançava nas montanhas da Suíça. Eu sabia que era na Áustria, Música no Coração, mas que importavam
estas clarificações quando me podia limitar a rodopiar com ela nos braços,
bebendo da sua felicidade, zelando para amortecer as suas quedas?
Ali em baixo,
dizia a minha mãe à vista das ruínas do casebre onde crescera, ali em baixo não
viviam pessoas, viviam animais. Não digo isto com mágoa nem nostalgia. Era
assim. Éramos assim. Agíamos por impulsos e necessidades, como o gado do outro
lado da parede. Quando vi o meu primeiro lobo, aqui mesmo onde estamos, senti
medo, claro, ia nesse sentido a escassa instrução que tínhamos, mas também me
achei em pé de igualdade com ele. Durante toda a vida pensei nestes encontros
como se fosse uma pobre criança indefesa à mercê de uma fera sem compaixão, mas
ultimamente vejo as coisas de outra forma. Sabes, dizia a minha mãe e repeti eu
a Leonardo, acho que agora me lembro melhor de tudo. Eu não ficava petrificada,
nem os lobos estavam convencidos da sua superioridade. Medíamo-nos com respeito
e curiosidade, muita curiosidade, e depois eu pensava que tinha de proteger as
vacas, que tratava pelo nome próprio, e de me salvar de uma sova em casa:
pegava em paus e pedras e gritava-lhes, aos saltos, como aqueles chimpanzés da
televisão. Podes-te rir, não me envergonho da comparação, eu era pouco mais do
que uma macaquinha, trepava às árvores e nadava nua no ribeiro — depois é que
tive de aprender tudo o que era certo e errado.»
in Hotel do Norte
Muito bonito. Muito comovente.
ResponderEliminar:)
ResponderEliminarNão é para qualquer um expor-se com esta elegância e subtileza, e ser comovente sem ser sentimental. Os meus parabéns.
ResponderEliminarObrigado.
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