«Não visitei o quarto senão quando
o Hotel era uma ruína sem ponta de nobreza, disse eu a Leonardo. Não que eu concordasse
que nobreza teria sido um termo adequado para caracterizar aquele edifício,
pese embora o facto de alguma nobreza nacional ter em tempos ali pernoitado.
Mas a decadência tem o poder de exaltar o que a antecede, disse eu, e nas
madeiras apodrecidas, nas paredes esburacadas, no mobiliário despedaçado podia
imaginar-se um luxo ou pelo menos uma distinção maior do que aquela que na
verdade existira.
Durante muito tempo não soube que
intuição me levara àquele exacto compartimento e depois descobri que a intuição
nada tinha a ver com o assunto. Em 1998 eram ainda visíveis as marcas claras dos
calendários na parede (ou eu imaginei que aquilo eram marcas de calendários) e
o crucifixo de madeira preta permanecia, tutelar, na parede onde se encostara a
cabeceira da cama. Depois o Hotel do Norte foi demolido e o espaço que ele
ocupava no chão entretanto nivelado era ridiculamente pequeno, parecia
impossível que naquela reduzida clareira do Parque pudesse ter existido semelhante
edifício e que por ele tivessem passado tantas épocas e tantas vidas.
Leonardo permanecia atónito
depois da nossa aventura no clube de jazz. Tínhamo-nos escapado sem qualquer
problema, mas abandonáramos o corpo inanimado de Octávio e eu sabia que isso
iria pesar na consciência dele, mesmo que nos tivéssemos certificado, à
distância, como malfeitores compassivos ou arrependidos, de que os amigos dele
o tinham enfiado numa ambulância não muito depois da minha agressão.
Ter imaginado que estes
acontecimentos me iriam deixar sem interlocutor (que importância tinha a minha
história perante a enormidade daquilo que Leonardo e eu fizéramos?, era isto
que Leonardo estaria a pensar naquele momento) fez-me desejar acelerar o
relato, saltar etapas, chegar ao seu término, mas logo percebi que era uma
coisa estúpida de fazer. Aquilo não podia ser varrido para debaixo do tapete,
ignorado como mais um incidente numa noite excessiva de copos, nem sequer sepultado
debaixo da torrente de revelações que eu reservara para Leonardo naqueles
últimos dias, dez anos depois da minha primeira partida. Ele olhava para mim e
— eu percebia — continuava a ver-me erguer o postalete e a fazê-lo descer sobre
a cabeça de Octávio, felizmente sem usar a circunferência aguçada da base. Se
fosse um dos seus próprios pacientes, Leonardo ter-se-ia aconselhado a
afastar-se de mim, pelo menos enquanto não conseguisse ultrapassar o trauma,
resolver o impasse existencial, moral, em que se afundara. Mas eu não era
apenas parte do problema, ou nem sequer era o problema. Leonardo precisava de
mim para se ver a si próprio a perder o juízo. Eu era o espelho, era mais fácil
ver-se reflectido em mim de navalha na mão prestes a consumar uma loucura. Se
tivesse de pensar sobre isto a sós — o que decerto também faria: à noite, na
cama; durante a curta viagem de carro para o consultório; nos únicos momentos
em que eu o deixava sozinho —, talvez não tivesse coragem de o fazer, pelo
menos não profundamente, não tão cedo, não sem se socorrer de uma boa dose de whisky. A minha presença solicitava o
que de racional e profissional havia nele, mesmo que desta vez a vocação
tivesse de ser posta ao serviço da sua auto-análise.
Eu queria ajudá-lo forçando a
normalidade. Estava de regresso à cidade para lhe contar a minha história e era
isso que iria fazer, já que nada tinha acontecido — queria eu que parecesse,
queria eu que fosse verdade — que impusesse uma mudança de planos. Mas daquela
noite em diante tivemos de lidar também com a presença opressora dos fantasmas
de Leonardo, que disputavam aos meus o espaço sofisticado do seu gabinete, ou
todos os outros sítios por onde andámos.
A primeira vez que desejei enfiar
um murro na cara de alguém, disse eu a Leonardo, não estava convencido, por
razões físicas e morais, de que o podia fazer. Ignorava a extensão da minha
força por nunca a ter verdadeiramente posto à prova e inibia-me o excesso de
doutrina católica. Temia que um murro não fosse suficiente e eu não fosse capaz
de sustentar a briga ulterior, mas temia ainda mais que o Céu estivesse de facto a observar-me e fosse testemunha da minha
iniquidade. Fingia então indiferença, superioridade, desprezo. Passei a fazê-lo
com demasiada frequência, ignorando o quanto era acreditado naquele meu papel (embora,
no íntimo, supusesse que pouco: não poderia transmitir esses sentimentos, ou a
ausência de sentimentos, uma vez que o que sentia era raiva, impotência, desejo
de vingança). Eu lia algures que uma pessoa podia transmitir beleza, se se sentisse
bela, ou confiança, se se sentisse confiante. O carisma, recitava de cor depois
de ter lido, era algo químico, como o odor que os cães pressentem quando não
conseguimos conter o medo. Mas eu sentia
medo e raiva e ressentimento, como poderiam os outros ignorá-lo? Não agredia a
murro todos aqueles que injustamente me incomodavam — o preto era também um medroso —, mas os meus pensamentos apresentavam
um currículo de serial killer, ou
pelo menos de alguém demasiado violento, incapaz de conter a cólera. Foi a
consciência de que, para todos os efeitos, eu era um pecador, que me era
impossível não transgredir em pensamentos e, consequentemente, impossível evitar
o Inferno, que me fez entrar numa nova etapa da minha vida. A lógica infantil
moldada pela catequese salvou-me, embora não da maneira que os catequistas
desejariam. Convenci-me, por volta dos doze anos, de que era um pecador reincidente
e que não tinha grandeza bastante para a redenção, já que não conseguia
arrepender-me de cada maldade que pensava. Se havia uma paridade entre os actos
e os pensamentos, por que me continha eu?
Quando a ocasião se proporcionou
de novo, disse eu a um Leonardo enfraquecido mas ainda capaz de atenção, tinha-me
livrado do obstáculo moral e desenvolvera uma estratégia para evitar a briga
que consistia em dar o primeiro murro — e dar também todos os seguintes, numa
sucessão e ritmo que imobilizasse o adversário antes de ele ter tempo de reagir
e notar que era mais forte. Jogávamos futebol. Ou jogavam os outros, e eu
limitava-me a sonhar que em algum momento poderia ser chamado a substituir um
dos da nossa equipa (fazia figas para que alguém se aleijasse o suficiente para
ter de sair do campo). Estava de pé junto à linha imaginária que delimitava a
área de jogo quando um rapaz mais velho, que não jogava, se aproximou pelas
costas e me puxou os calções até aos joelhos, perdido de riso e a gritar para
as raparigas que assistiam envergonhadas se era verdade ou não que também a
minha pila era preta.
Por segundos que me pareceram
eternos, fiquei ali com os calções em baixo a sentir a maior humilhação da
minha vida. Depois, baixei-me para os puxar para cima e com o mesmo movimento
apanhei um pau do chão e atirei-me com ele para cima do tipo que me fizera
aquilo. Não parei de lhe bater enquanto não houve sangue e quando terminei já
não sentia raiva nem sentia nada. À minha volta todos estavam parados a olhar,
sem decidirem o que fazer. Eu tinha sido o ofendido, era meu direito retaliar,
mas na sua apatia eles pareciam buscar uma razão para se lançarem em grupo
sobre mim. Abandonei no mesmo momento o jogo em que não participara e abandonei
a obsessão em sentir-me injustiçado, rejeitado. Dali em diante seria
verdadeiramente capaz da indiferença, do desprezo, não raro da superioridade.
Passei por eles como numa despedida, a aguentar os seus olhares confusos e
nervosos, vazio de sentimentos e estados de espírito.
Terminei a história sem
convicção, não estava convencido de que as coisas se tinham passado assim, de que
aquele tinha sido um momento inaugural ou sequer que tivesse existido. Por
vezes, imaginava a minha biografia, ou alguns episódios dela, como uma ficção
que eu próprio reescrevia de acordo com uma disposição posterior. Leonardo deve
ter percebido esta hesitação e interpretou-a como se eu estivesse a tentar algo
para o confortar, a inventar uma parábola, uma coisa que relativizasse o seu
acto e lhe apontasse pistas sobre como lidar com ele e com o futuro, se acaso Octávio
recuperasse com vontade de continuar a sua saga importunadora. Talvez fosse
assim de facto, talvez esta história não fizesse parte da narrativa inicial que
eu tinha para Leonardo e a tivesse inventado no momento, para ele e para mim,
como uma forma de lhe ser útil.»
in Hotel do Norte
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