domingo, 28 de dezembro de 2014

Selfie ou as faculdades paliativas da nostalgia

Descem a vereda do parque em passo lento de sábado à tarde. Vistos de costas, não se percebe se são namorados, se irmãos ou mãe e filho (ela parece mais velha), mas essa dúvida é ainda mais espúria quando os vemos posar para a fotografia: o que importa se o que encenam para a câmara é amor romântico ou ternura familiar? No simulacro dos sentimentos é indiferente o tipo de parentesco.
Encostam muito a cara, o braço dele sobre os ombros dela, ela como tenaz a cingir-lhe os rins. Podem estar só a espremer-se para caberem no enquadramento (acontece até a estranhos em bodas, ombrear promiscuamente a mando do fotógrafo), e a expressão feliz que de súbito lhes ilumina o rosto pode ser a apenas a resposta instintiva, culturalmente determinada, a um imaginado «olh’ó passarinho». Regressarem com igual rapidez às caras sisudas anteriores parece corroborar esta ideia de que presenciamos uma farsa inocente, ritual.

Mas nada impede a especulação literária. A vida não impede geralmente a especulação literária. Fotografias sorridentes são instrumento que as pessoas usam para acreditarem, a coberto dos anos ou da distância, que em certo dia ou local foram felizes. A foto como alibi para a auto-estima ou o optimismo. Talvez alguém naquele casal conhecesse já as faculdades paliativas da nostalgia.

(Folhear um álbum é seguir uma prescrição antiga de alienação e tirar fotografias com este móbil poderia ser judicialmente censurado como plantar cannabis. Mesmo que apenas para consumo próprio.)

3 comentários:

  1. é verdade, escondemos-nos muitas vezes atrás das fotografias...

    e nestes tempos em vez de olharmos as coisas como elas são (a fotografia distorce a realidade, sempre...), fartamos-nos de disparar, a máquina ou o telemóvel, quase esquecidos do real.

    bom ano de 2015, Rui Angelo, com um novo livro.

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  2. Mas mais intrigantes são as fotos do protagonist tendo um monumento por detrás:
    "Olha eu quando fui ao Taj Mahal!"
    Serão certificados de autenticidade ? Mementos dos lugares certamenre não são-um simples postal cumpriria melhor o objectivo.A justaposição na mesma imagem do fulano A com o Big Ben tirada naquele preciso instante é valiosa por ser irrepetivel e unica ?
    Sim, talvez, mas para quem ?
    O seu velho conhecido Martin Amis disse um dia que há dois tipos de escritores: Os contadores de histórias e os cinzeladores de palavras. Acho que o Rui faz o dois em um, e com tanta coisa para contar, tanto segredo para desvendar, aguardamos com suave expectative que nos comece a encantar.
    manuel.m

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