«(...) Eu fazia isso em algumas noites, com o impulso
gótico de me vir enrodilhar depois nas algas ou nas ervas das águas menos
profundas, sentindo a repugnância da sua viscosidade, as suas carícias
arrepiantes de seres vivos asquerosos, a sujidade do lodo a levantar-se do
fundo e a procurar envolver-nos numa nuvem perceptível de sanguessugas. Eram
banhos de podridão com que eu procurava purgar-me, em noites de lua nova, da
benfazeja luz solar que no Douro nos faz sentir príncipes destinados ao ócio e
ao amor cortesão numa eternidade descomprometida, leve, a conjugar verbos
apenas no único tempo interessante, o presente.
Desci ao cais nessa noite com o mesmo propósito de mergulhar,
de me espolinhar nas águas rasas da margem e regressar ao quarto pingando lama,
para desespero do pessoal da limpeza no dia seguinte. Mas a lua estava agora muito
avançada no seu quarto crescente, iluminando com uma proficiência de lua cheia
aquele troço de rio ainda livre do excesso de iluminação pública que já se
verificava em tantas estradas desertas da região. A presença da Adèle, nos seus
habituais trajes etéreos, dedicando-se na beira do cais a seduzir o firmamento
nocturno com o mesmo ritual dervixe que lhe vira no primeiro dia, fez-me mudar
de planos. Inicialmente pensei que podia ficar apenas a observá-la, com aquele
deslumbramento juvenil de rapaz que pela primeira vez descobre os contornos de
um corpo feminino, mas depois agi como agem os homens adultos, se
suficientemente cheios de si, e fui meter conversa.
Não era uma surpresa que a Adèle estivesse receptiva
à conversa — não havia por ali muita gente com quem falar e eu ainda não estava
transformado como habitualmente no Swamp
Thing. As constelações, se formos competentes nisso e o céu estiver
descoberto, são um bom tema de conversa. Há outras possibilidades, além dessa
mostra extravagante de erudição cosmológica, como por exemplo a deriva para a
Antiguidade Clássica — com os seus deuses, os seus mitos, as suas metamorfoses,
os seus amores e a sua excitante promiscuidade — ou para assuntos de foro
místico, como os signos do Zodíaco, igualmente prenhes de insinuações amorosas
e preliminares sexuais.
A temática estelar interessou Adèle, seria aliás uma
surpresa que não interessasse a alguém tão eminentemente espiritual, mas ela
quis ver os astros do meio do rio. Que esse desejo tivesse uma plausibilidade geométrica,
digamos, assente no cálculo intuitivo de que no ponto mais equidistante de
ambas as margens arborizadas a cúpula celeste se revelaria de uma forma mais
ampla, não diminuiu o meu sentimento de que havia uma intenção romântica na
vontade dela. Tanto mais que me perguntou, delicadamente, se sabia remar.
Deslizámos em silêncio para o meio da corrente, que,
apesar de fraca, não permitia que o bote permanecesse estacionário como num
lago. Preocupei-me, por isso, em orientar a proa no sentido da corrente,
corrigindo o nosso avanço involuntário com ocasionais movimentos dos remos. A Adèle
reclinara-se na popa, com as pontas dos cabelos de nórdica submergidas no Douro
e oferecendo a sua garganta branca à Lua e ao meu olhar.
Esgotado o meu conhecimento sobre constelações, e
ainda com os contornos fantasiosos da casa da Quinta à vista, como se
estivéssemos no meio do Lago Léman, a rapariga belga, inspirada por essa mesma
divertida imagem nocturna de uma Suíça duriense, enveredou pela história de
Mary Shelley, de que parecia ter decorado longos parágrafos da Wikipédia. Falou
da mãe da escritora, a feminista Mary Wollstonecraft, e do seu pai, o filósofo
William Baldwin. A Adèle estava simplesmente a fruir um tema que a entusiasmava
e, com intenção ou não, a dar-me a conhecer a sua adesão a ideais de amor
livre, mas eu ficara retido umas passagens atrás, na entrada do seu dicionário
que falava dos escritos de Baldwin sobre o casamento enquanto «monopólio
repressivo».
A linhagem Wollstonecraft/Baldwin/Shelley era algo
mais do que eu poderia suportar. Toda aquela gente de espírito livre, tão
sensata e avançada quanto às relações entre homens e mulheres, parecia ter sido
convocada para me fazer enfrentar os meus fantasmas recentes. Se a Adèle
tencionava ter comigo o seu caso amoroso no Douro Superior dera um passo em
falso com aquela digressão de enciclopédia online.
Eu teria sido facilmente seduzido, naquele tão agudo estado de carência, mas,
pelo menos de momento, ocorria-me tudo menos ter sexo com ela no fundo
impermeabilizado do bote da Quinta de Pompeia. Antes que, de Shelley, me viesse
à inspiração Frankenstein, um ser de um
romantismo menos delicado, remei com furiosa urgência até ao cais, alegando
efeitos secundários do jantar, de costume tão saboroso e serenamente digerível.»
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