«Quando gentilmente me convidaram para participar numa conversa à volta do tema desta exposição, o meu primeiro impulso foi declinar, gentilmente, o convite. Isto porque não sou especialista em nenhum dos tópicos da exposição: a raça maronesa, o transporte de mercadorias no século dezanove, a águas das Pedras ou mesmo as Termas das Pedras.
Contudo, deram-me três argumentos para aceitar o convite: nasci e cresci nas Pedras Salgadas, sou filho de um homem que dedicou a maior parte da sua vida àquela terra — e que hoje está de certa maneira ele próprio musealizado no Pedras Experience — e um dos romances que publiquei foi em parte construído a partir de memórias e experiências das Pedras Salgadas em três épocas distintas.
Aparentemente, isto qualifica-me para estar aqui hoje. Isto e talvez o facto de, durante as minhas primeiras duas décadas de vida, ter bebido tantos litros de água das Pedras que a partir de certa altura o meu organismo deixou de tolerar qualquer bebida com gás. Sou um pouco como o Obélix: caí em pequeno dentro do caldeirão mágico da água das Pedras e deixei por isso de ter direito a bebê-la. Infelizmente, tal incidente não me deu forças sobre-humanas como ao Obélix.
Depois de aceitar o convite, pensei um pouco no tema da exposição, nesta viagem de 48 horas entre Pedras Salgadas e a Régua, e a primeira imagem que me veio à memória foi precisamente de quadrúpedes, mas de uma outra espécie animal. Nem foi bem uma imagem, mas toda uma experiência sinestésica, que incluiu visão, cheiro e, antes de tudo, som. Essa memória evocou, não o gado maronês, mas cavalos. Cavalos que faziam a mesma viagem entre a Régua e as Pedras, só que em vez de puxarem carroças tinham o privilégio de viajar de comboio. (Comboio esse, já agora, movido a cavalos-vapor, num comboio ainda a vapor.)
A lembrança que mencionei retrata um momento especial de cada ano na história de Pedras Salgadas: a temporada do Concurso Hípico, um dos muitos elementos que singularizavam aquele lugar no Verão. Os cavalos que participariam nas provas, tantos deles das forças armadas, chegavam às Pedras na sua maioria de comboio e faziam o último troço do percurso, a partir da estação, pela estrada de paralelos que passava em frente à casa onde cresci. Quando as crianças do bairro começavam a ouvir ao longe o som dos cascos ou das ferraduras no granito da calçada, ninguém as podia deter, saíam todas para a rua a ver passar o desfile. Durante largos minutos, passavam, levados pela arreata, algumas dezenas de cavalos, mais altos, esbeltos e briosos do que os animais que estávamos acostumados a ver. Largavam poios como o gado que diariamente usava aquela estrada (daí o cheiro na memória), mas até a fragrância desses poios era ou parecia-nos diferente de tudo o que estávamos habituados a cheirar. Quando aquele festival dos sentidos (visão, som e cheiro) regressava para um desfile na direcção oposta, depois de terminados os dias do Concurso Hípico, uma pequena melancolia toldava o fascínio com que saíamos à rua outra vez.
E isto, esta melancolia, remete-me para a mística nostálgica de Pedras Salgadas. Talvez todas as terras tenham os seus mitos, as suas velhas glórias, mas nem todas serão territórios de fronteira, ou melhor, pontes entre diferentes mundos sociais e diferentes tempos históricos, como as minhas Pedras Salgadas foram e continuam a ser. Naquela aldeia, hoje vila, vivíamos nos anos setenta e oitenta do século XX numa espécie de portal onde o espaço-tempo se baralhava. Era um mundo rural em volta de um território murado (o Parque das Termas) onde no Verão se respirava urbanidade, trazida pelos hóspedes dos hotéis, oriundos sobretudo de famílias da burguesia do Porto. Em simultâneo, pairava em permanência sobre aquela terra a memória do período áureo da «mais bela estância termal portuguesa», como era chamada nas primeiras décadas do século XX, quando era visitada também pela aristocracia.
A existência nas Pedras, sobretudo económica, era definida em função das suas termas, e por isso as sagas familiares eram (e são) também marcadas pela memória das Termas. As famílias que ali moravam, as sucessivas gerações, na sua maioria serviam a Empresa das Águas e as Termas, nas mais diferentes profissões. Daí que, àquilo que testemunhávamos com os nossos olhos, estivéssemos sempre a adicionar as histórias e as memórias dos mais velhos. Não tinham sido vidas fáceis, as deles, mas o glamour do Parque e dos seus hotéis de certa maneira amenizava o esforço de quem muito trabalhara para pouco ter. E o convívio de perto com figuras que pareciam saídas de romances ou filmes trazia, sobretudo a posteriori, uma pequena recompensa que se somava ao salário ou à reforma. A dureza dos tempos era de certa forma relegada pelas histórias das Termas e das Águas de que cada um se fazia contador.
A singularidade das Pedras Salgadas teve um outro momento especial no pós 25 de Abril, quando uma vaga de cosmopolitismo cobriu a povoação. Como em vários outros locais do país, os hotéis das Termas foram requisitados para acolher pessoas vindas das ex-colónias, aqueles a quem na altura se chamou «retornados». Durante esse período, mais uma vez o território rural das aldeias em volta dos muros do Parque foi posto em contacto com um universo social novo, mais exótico, que lentamente se entronizou, acrescentando mundo à sociedade local.
Foram estas distintas épocas e dinâmicas sociais que procurei retratar no romance Hotel do Norte, que foi buscar o título ao nome de uns dos hotéis que existiam nas Termas de Pedras Salgadas, entretanto demolido. No romance, como na vida real, as Termas são uma fonte permanente de mistério e investigação histórica, uma fonte de arqueologia. Quem habita ou habitou naquela terra está ou esteve imerso em história e arqueologia. Até no sentido técnico do termo, porque, a partir de certa altura, com a decadência do turismo termal e o desinteresse das sucessivas empresas concessionárias, vários edifícios e espaços das Termas ficaram acessíveis à visita e ao saque de quem por ali vivia. Inúmeras das minhas memórias e fantasias de criança têm como origem espaços e objectos concretos das Termas, retirados das suas sobrepostas camadas geológicas. Cada um dos habitantes das Pedras tem dentro de si (e alguns dentro das suas casas) o seu próprio museu, o seu próprio Pedras Experience, repleto de objectos e memorabilia.
Ainda hoje, quando visito as Pedras, visito não apenas a família (quase toda ela ligada à empresa das Águas), mas aquele mundo híbrido, composto, que continua a concentrar em si, nos vestígios que ainda restam, uma multiplicidade de tempos históricos e vivências sociais. Há, de resto, um turismo de nostalgia à volta das Pedras Salgadas, não totalmente aproveitado. Quando as empresas que vão explorando o filão da água procedem à demolição de edifícios, estão a destruir e a desbaratar um património. Todos gostavam que o turismo fosse ali plenamente reabilitado, para felicidade e benefício económico geral, mas é para mim um erro que isso se faça terraplanando o que existe, mesmo que se construam no seu lugar maravilhas. Na ausência de recuperação, os edifícios deviam pelo menos ser consolidados e mantidos como testemunhos observáveis de uma era. Roma não seria Roma sem as suas ruínas.
Termino esta evocação, mas não sem fazer uma referência à raça maronesa, que também marcou a minha época de formação nas Pedras Salgadas. A minha casa ficava entre o Parque das Termas e a casa de um lavrador. De um lado, eu tinha a sofisticação e o ócio do universo balnear; do outro, a dureza e a força telúrica do mundo rural. De um lado, citando um dos textos disponíveis na exposição, estava a obra de «homens de espírito empreendedor, de largas vistas e grandes aspirações» e, do outro, espécimes da «raça maronesa, exemplo de rusticidade, resiliência e mansidão». Essas duas influências construíram também a minha identidade cultural. Em certos dias, as minhas aventuras levavam-me a descobrir os segredos do Parque; noutros, montava em carros puxados por juntas de bois iguais aos que se vêm nas fotos da exposição — e que chiavam estridentemente na subida para o combarro onde se descarregava o milho. Houve dias ainda, há que lembrá-lo também, que apanhei bosta fresca daquelas vacas maronesas para isolar a porta do forno onde a vizinha cozia pão. E posso dizer, em abono da raça, que as broas saíam saborosas.»
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Preâmbulo para uma conversa a propósito da exposição “48 HORAS”, que documenta o transporte da água das Pedras, em carros de bois, até à estação de comboios do Peso da Régua, no final do século XIX e principio do século XX. Organização: Museu Pedras Experience | Projecto Terra Maronesa.
Galeria de Artes do Auditório Municipal do Peso da Régua, 26/11/2021
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