Todos os parques que se prezem têm figuras mitológicas. Aquele que atravesso para ir trabalhar ou quando resolvo correr junto ao rio também as tem e uma delas está viva, cruzamo-nos com certa frequência, até já a mencionei em dois ou três destes textinhos. Faz-se geralmente acompanhar de um aparelho de música dentro de um saco de plástico que debita êxitos melancólicos dos setenta e oitenta ou, talvez quando o humor está mais espevitado, música de baile brejeira. O volume também varia com os dias ou os humores, por vezes elevado a uma agressividade punk que não tem correspondência no rosto do portador. Hoje estava baixinho, surpreendentemente baixinho, e não foi a primeira coisa em que reparei.
Olhava um casaco à minha frente que, sendo mais rosa do que púrpura, ainda assim me fez pensar no casaco de angorá de Agnes, a mãe alcoólica de Shuggie Bain, protagonista do livro homónimo de Douglas Stuart sobre uma infância dura em Glasgow. Uma cabeça miúda encostava-se ao ombro daquele casaco e o par ia de mãos dadas, carinhosamente. Foi quando os ultrapassei que ouvi a música e vi o saco.
Era uma imagem inesperada, o habitante solitário e melancólico do parque — talvez, como Shuggie, vítima de bullying na infância, se já tinha então aqueles modos tímidos e invulgares — de mão dada com uma mulher vestida de angorá. A literatura a irromper pela vida real.
A mulher não tinha idade para ser mãe do homem da música e não tinha ar de alcoólica, mas a ternura recíproca surgiu-me ali surpreendente e redentora (e efémera) como em certas passagens de Shuggie Bain.
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