quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Breve história do engajamento político na imprensa do meu tempo

Quando comecei a ler jornais, rapidamente me interessaram os colunistas que, tanto quanto podia na altura julgar, possuíam uma de duas virtudes (preferencialmente as duas): boa prosa (inteligente, imaginativa, irreverente, culta, elegante, capaz de ironia e humor) e pensamento acutilante (perspicaz, mas também independente, livre, imparcial).

À época governava Cavaco Silva e tinham surgido o Independente e a Kapa e foi maioritariamente nessa dupla impressa que julguei ter encontrado o que me interessava. Depois Paulo Portas escancarou as suas ambições políticas, Miguel Esteves Cardoso deixou de beber como antes (e continuou a escrever ainda bem mas sobre ninharias) e os caminhos que apontaram à imprensa foram entretanto mais ou menos tropeçados por outros artífices.

Veio o tempo em que comprava dois diários e dois semanários e lia regularmente certos escribas. Os governos tendiam agora a ser socialistas e alguns colunistas (cujos nomes me abstenho de dizer por embaraço) permaneciam contra, o que, em vez de um padrão caprichoso, parecia confirmar independência de espírito.

Surgem os blogues, com uma nova direita carregada de bibliografia selecta como antes a esquerda estivera carregada de Marx e seus exegetas, Bush filho invade o Iraque contra o mundo razoável e na imprensa alguns começam a cumprir o que uns quantos vinham candidamente defendendo: o esclarecimento das opções ideológicas. José Manuel Fernandes sai do armário, o arquitecto Saraiva regressa às cavernas.

Eis que Passos Coelho herda a alegre bancarrota de Sócrates (e a não menos impudica mas mais indultada crise internacional) e, como se diz hoje dos portugueses vacinados, quis mostrar-se o melhor aluno da Europa — no caso, o melhor aluno do neo-liberalismo ou capitalismo selvagem ou o que lhe quiserem chamar (que social-democracia não é de certeza) — e o que antes (não imediatamente antes, a bem dizer) parecia colunismo imparcial revelou-se então no seu esplendoroso envolvimento e activismo ideológico: aqueles colunistas pela primeira vez não eram contra.

Os armários (e as cavernas) abrem-se de par em par, e colunistas, bloggers e alguns escritores, legitimando-se e estimulando-se mutuamente, soltam o lastro, soltam a franga, recolhem âncoras e zarpam de melena ao vento, cavalgando a onda que lhes parece a onda certa da História, como se nos oceanos só houvesse tsunamis e a Lua não tivesse um papel nas marés. Dispensam já, embora digam o contrário, o teatro da objectividade, da imparcialidade, da justiça, porque a hora é de combate, de militância, de alistamento — de engajamento, essa prática outrora lastimável nos velhos intelectuais de esquerda. Põem-se activa ou passivamente do lado de Trumps e Bolsonaros e criticam Putin apenas para disfarçar o quanto são por ele fascinados. Para facilidade de leitura, se não estão no CM, juntam-se maioritariamente no Blasfémias e no Observador — e isso temos de lhe agradecer.

Mais erro, menos erro na cronologia, é esta a breve história do engajamento político na imprensa do meu tempo.

1 comentário:

  1. Por causa de textos como este é que venho a este blog. Na mouche, parabéns!

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