Depois de trabalharem e de cumprirem os seus ritos comunitários
pós-prandiais, que nas noites quentes de Verão se alargam, as pessoas vão para
casa. Eu vou para a varanda. As ondas de calor fazem de mim um sem-abrigo, porque
tornam os compartimentos do T3 território inóspito para a humanidade. Leio e
dormito na cadeira de plástico da varanda até ser demasiado doloroso segurar a
cabeça e então, alta madrugada, arrasto-me para a cama, sabendo que vou suar as
estopinhas cada hora de sono mal dormido.
Hoje, depois de há muito escancarar todos os vãos nas duas fachadas do
prédio, a aproveitar como náufrago a brisa que se levantou, consegui finalmente,
às quatro da manhã, baixar em dois graus a temperatura cá em casa (de 32 para
30). Significa que sentar-me ao computador é um exercício de masoquismo um
pouco menos clamoroso.
Se tivesse um jardim com plantas arbustivas, poderia preencher estas
madrugadas de canícula esculpindo ou fazendo a poda, como uma das vizinhas da
rua de trás. Não é a primeira vez que ouço a velha senhora atarefar-se alta
noite, mas geralmente apenas trata de despejar o lixo no contentor ao fundo da
rua ou de arrumar o pátio a horas inesperadas. Ontem muniu-se de escadote e, em
bata sobre camisa de dormir, tesourou durante hora e meia, varrendo de seguida minuciosamente
o passeio. Não a podemos censurar: fazer
aquele trabalho de dia teria sido suicídio e as insónias não têm de ser meros
períodos de desespero, podem ser rentabilizadas.
É o que tenho tentado fazer, com menos sucesso do que a minha vizinha. Havia,
teoricamente, uma certa correspondência entre o labor dela e o meu. Ambos
decidíramos podar, ela os seus ciprestes, loureiros, carpa europeia ou o que
quer que lhe nasceu no jardim, eu as provas do meu Os idiotas. Acontece que, ao contrário dela, eu não me consigo
livrar dos ramos secos, desordenados, murchos, apodrecidos, porque nesse caso
teria de me livrar de toda a obra.
O que escrevi atrás não é falsa modéstia, autodepreciação pedante. Explico-me
melhor: eu estava apenas a tentar imaginar uma versão do romance que pudesse
apresentar ao meu pai. E concluí que ela não existe. Se pusesse de lado a linguagem obscena, a
sátira, a incompassiva crónica de costumes, ficaria talvez com uma
novela amorosa ou psicológica nas mãos — negra, desesperançada, dispensável ou igualmente inapresentável. Estou lixado. Escrevi uma comédia, mas levá-la lá para casa será como contar
uma anedota porca à mesa de jantar. Impensável.
li no site dos idiotas: "Escreveu algumas dezenas de contos e três romances, todos indignos de ‘imprimatur’."
ResponderEliminaragora parece q estás c medo d imprimatur o primeiro livro!
é conhecido o medo q as pessoas têm d n conseguir manter o nível do segundo álbum, livro, etc.
pelos vistos tens os medos investidos no primeiro, e a culpa é do pai!
deixa lá isso, se o livro n for excelente ou genial ninguém morre, há montes d livros por aí.
e tens sempre mais umas tentativas.
é melhor ir trabalhando e tentando do q n fazer nada.
bota lá isso cá para fora, depois logo se vê, até pode ser q aprendas c algumas críticas boas q façam ao livro e o segundo saia mais fácilmente.
luis boticas
Escreve muitíssimo bem. Não tem nada a temer. Faça um favor às letras portuguesas: escreva!!!!
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