De quando em quando, a noite regista mais do que grupos ululantes a
circular entre bares, desafiando-se com cânticos hooligans ou remetendo bocas hardcore
para o campo feminino. Há ocasionais e variadas zaragatas (com tiros, uma vez;
mas nunca vi ninguém a ser perseguido com um machado, como numa existência anterior
apreciei de uma outra janela). Há a sempre fascinante e lenta progressão de bêbados
solitários ou em pares que (mal) se amparam e que têm sempre uma cantiga ou uma
queixa contra o mundo, não só contra a forma como ele insiste em inclinar-se e
rodopiar. Há os acidentes de trânsito, geralmente de um só veículo, conduzido por
outro género de bêbado, um que prefere enfaixar-se nos carros estacionados do
que ziguezaguear pedonalmente nos passeios como bola de flippers, ressaltando em postes e paredes.
Uma noite de Natal houve um automóvel que quis ser uma bola de flippers:
desceu a rua ricocheteando nas viaturas estacionadas de um e outro lado da
estrada. A faixa de rodagem, de sentido único, não é larga, mas sobra mais de
uma mão travessa de cada lado. Quer dizer, se um tipo tiver a pontaria
minimamente afinada chega incólume ao ponto onde a rua se alarga e bifurca
(alguns ficam indecisos até ao último momento e vão em frente, pelo canteiro
adentro ou até à traseira do infeliz que ali tenha estacionado). Mas o álcool e
a pontaria são opostos e naquela noite de Natal o tipo veio batendo aleatoriamente
do início ao fim da rua, deixando destroços como se conduzisse um Panzer em vez
do Mercedes do pai. Levantei-me da cadeira ao segundo impacto e, quando o carro
se deteve sem uma roda e sem o pára-brisas debaixo da minha varanda, depois de uma
boa meia dúzia de ressaltos, já eu estava a postos para observar os danos
finais (e marcar o 112). Durante alguns segundos, não aconteceu nada, ninguém
saiu do carro. A noite ficou silenciosa como costumam ser as noites de Natal. O
tempo congelou, como as poças da chuva congelam noutras noites. Depois saíram duas
pessoas de trás dos airbags insuflados
e mais três das portas traseiras. Não houve menos silêncio por elas terem saído:
afastaram-se uns metros e ficaram a olhar o carro com pasmo idêntico ao meu.
Passaram talvez uns três minutos quando finalmente a cena teve seguimento. O
condutor, pouco mais do que adolescente, iniciou uma pouco surpreendente e estupefacta
choradeira, encostado a um muro; as moças abraçaram-se, talvez agradecendo a «sorte»;
os outros dois colegas masculinos, sacudindo as ideias, ponderaram enviar o
condutor para casa, talvez não fosse sensato ele esperar a polícia e o alcoolímetro.
Abandonei a cena quando começaram a chegar outros voyeurs e me lembrei que o meu
carro estava estacionado naquela rua*.
Hoje houve lá fora um barulho que evocou aquele e me fez sentar ao
computador a escrever esta história em vez de ir descansar mais cedo os ossos. E
só a escrevi porque a realidade desta vez não fora interessante: era apenas um
tipo cuja piela o convidara a deslocar-se pelas ruas arrastando uma chapa que
ressaltava nos lancis e nos paralelos. Às
três e meia da manhã, era talvez a memória genética de um caçador-recolector a
arrastar a sua presa ou a programação igualmente genética de um «macho viril» a
arrastar pelos cabelos a sua fêmea. Ou era apenas eu que precisava de uma
história e não de mais um bêbado sem interesse.
* Sobreviveu
* Sobreviveu
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