sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Os meus bêbados

A minha sala é um posto de observação para a noite. Horários favoráveis e esta vocação para a teimosia (mais do que para a literatura) deixam-me de vigília enquanto o resto do prédio dorme. Uma vizinhança de bares providencia frequente fauna que observar. Por vezes apetece-me abrir a janela e informar a rapaziada ébria que não precisa de gritar nem de tocar às campainhas, já estou acordado. Mas talvez não seja a pensar em mim que eles fazem os seus números de «rebeldes» patetas.
De quando em quando, a noite regista mais do que grupos ululantes a circular entre bares, desafiando-se com cânticos hooligans ou remetendo bocas hardcore para o campo feminino. Há ocasionais e variadas zaragatas (com tiros, uma vez; mas nunca vi ninguém a ser perseguido com um machado, como numa existência anterior apreciei de uma outra janela). Há a sempre fascinante e lenta progressão de bêbados solitários ou em pares que (mal) se amparam e que têm sempre uma cantiga ou uma queixa contra o mundo, não só contra a forma como ele insiste em inclinar-se e rodopiar. Há os acidentes de trânsito, geralmente de um só veículo, conduzido por outro género de bêbado, um que prefere enfaixar-se nos carros estacionados do que ziguezaguear pedonalmente nos passeios como bola de flippers, ressaltando em postes e paredes.
Uma noite de Natal houve um automóvel que quis ser uma bola de flippers: desceu a rua ricocheteando nas viaturas estacionadas de um e outro lado da estrada. A faixa de rodagem, de sentido único, não é larga, mas sobra mais de uma mão travessa de cada lado. Quer dizer, se um tipo tiver a pontaria minimamente afinada chega incólume ao ponto onde a rua se alarga e bifurca (alguns ficam indecisos até ao último momento e vão em frente, pelo canteiro adentro ou até à traseira do infeliz que ali tenha estacionado). Mas o álcool e a pontaria são opostos e naquela noite de Natal o tipo veio batendo aleatoriamente do início ao fim da rua, deixando destroços como se conduzisse um Panzer em vez do Mercedes do pai. Levantei-me da cadeira ao segundo impacto e, quando o carro se deteve sem uma roda e sem o pára-brisas debaixo da minha varanda, depois de uma boa meia dúzia de ressaltos, já eu estava a postos para observar os danos finais (e marcar o 112). Durante alguns segundos, não aconteceu nada, ninguém saiu do carro. A noite ficou silenciosa como costumam ser as noites de Natal. O tempo congelou, como as poças da chuva congelam noutras noites. Depois saíram duas pessoas de trás dos airbags insuflados e mais três das portas traseiras. Não houve menos silêncio por elas terem saído: afastaram-se uns metros e ficaram a olhar o carro com pasmo idêntico ao meu. Passaram talvez uns três minutos quando finalmente a cena teve seguimento. O condutor, pouco mais do que adolescente, iniciou uma pouco surpreendente e estupefacta choradeira, encostado a um muro; as moças abraçaram-se, talvez agradecendo a «sorte»; os outros dois colegas masculinos, sacudindo as ideias, ponderaram enviar o condutor para casa, talvez não fosse sensato ele esperar a polícia e o alcoolímetro. Abandonei a cena quando começaram a chegar outros voyeurs e me lembrei que o meu carro estava estacionado naquela rua*.

Hoje houve lá fora um barulho que evocou aquele e me fez sentar ao computador a escrever esta história em vez de ir descansar mais cedo os ossos. E só a escrevi porque a realidade desta vez não fora interessante: era apenas um tipo cuja piela o convidara a deslocar-se pelas ruas arrastando uma chapa que ressaltava nos lancis e nos paralelos.  Às três e meia da manhã, era talvez a memória genética de um caçador-recolector a arrastar a sua presa ou a programação igualmente genética de um «macho viril» a arrastar pelos cabelos a sua fêmea. Ou era apenas eu que precisava de uma história e não de mais um bêbado sem interesse.

* Sobreviveu

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