sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Narciso

Estava há poucos dias no seu novo emprego de recepcionista de uma clínica dentária quando reparou no rapaz que todas as tardes passava em frente à porta envidraçada da rua e espreitava para o interior. De início foi só a curiosidade de ver quotidianamente um gajo bonito, fazer apostas consigo mesma sobre se viria hoje, sem atraso, se olharia. Depois, convenceu-se de que aquela passagem já não era uma coincidência, que havia um motivo, e que o motivo era ela. O rapaz descobrira por acaso a nova recepcionista atrás do balcão, encantara-se e, porque era tímido, não ousava entrar, limitava-se a fazer olhares, expressões subtis e gestos mais ou menos discretos no tempo que demorava a percorrer os três metros de envidraçado. Algumas semanas mais tarde, por iniciativa e manobras dela, que o foi descobrir nos locais onde ele parava à noite, ficaram de certa forma namorados. Na última vez em que estiveram juntos, ela fez um escândalo porque ele não parava de olhar por cima do ombro dela para uma rapariga noutra mesa, com aquelas expressões que conhecia bem.
Tivesse ela sido capaz de se pôr no lugar dele, quer dizer, tivesse ela experimentado a perspectiva dele naquela mesa (sentando-se no lugar do rapaz, de frente para o espelho da parede ao fundo) e quando passava em frente à clínica (optando um dia por entrar pela porta dos clientes, espelhada pela luz da rua, em vez de pela porta de serviço, como sempre fazia) e teria descoberto que os olhares do rapaz eram uma coisa dele consigo mesmo. Não teria encetado o namoro, é certo, mas teria também poupado uma cena de ciúmes sem causa

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