Há contudo nos últimos tempos um sujeito careca nos seus quarentas que
se posiciona durante a hora de almoço numa escadaria com vista para uma das represas.
Talvez tenha agora descoberto que aquele é um bom sítio para almoçar. Talvez
tenha voltado a fumar e ali, meio camuflado pela vegetação, não o assolem tanto
os remorsos nem a censura de familiares ou colegas. Talvez seja vítima de
desgosto recente e os olhos com que vê a queda da água não sejam indiferentes à
melancólica beleza da corrente. Talvez, enfim, seja apenas um dealer a variar de ponto de distribuição
por gosto ou cálculo e o telemóvel lhe trema nas mãos em resultado de um
mercado em alta e não de um astral em baixa.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Os habitantes do parque: notas para um inventário
O parque não é habitado por gnomos ou outros seres mitológicos, pelo
menos que eu saiba. Nem há assim tanta gente que se possa dizer que é do parque. Às horas que o percorro, de
dia, lembro-me de um clérigo de uma religião alternativa, com a sua gabardina dois
números acima, um saco na mão direita e frequentes olhos no céu; um reformado pesadão
de bengala e cão idoso pela trela que tem um pedaço do parque como quintal; um
advogado e um pastor alemão com o mesmo ar de poucos amigos, ambos sem açaimo,
numa caminhada enérgica antes do expediente da tarde; duas ou três senhoras
indistintas e decididas no seu fato-de-treino claro e no seu trekking pós almoço; os habituais
funcionários camarários vestidos de verde-almeida e responsáveis pela relva, na
parte em que o parque é relvado; um senhor com luvas, protectores de orelhas e eventuais
problemas de colesterol ou próstata cumprindo a prescrição médica… Quase todos
os outros são meros transeuntes que atalham pelo parque a caminho de qualquer destino
alhures, geralmente indiferentes ao caudal do rio, à azáfama da passarada ou ao
estádio da floração. Ao final da tarde a fauna aumenta, mas malogradamente
outras ocupações impedem-me de lhe fazer o inventário. E às minhas horas da
noite já quase não sobra ninguém: um ou outro corredor de calças de lycra, uma
ou outra parka com gente anónima dentro.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário