«Havia um guarda-fatos lá em casa que era
como o baú de um mágico. No seu metro e setenta de largura de madeira sólida,
continha roupa de várias gerações e modas, entre camisas, gravatas, calças,
coletes, casacos, jaquetas, sobretudos, gabardinas e algumas peças femininas
avulsas. Os cabides tinham de ser robustos, como a vareta que os sustentava,
porque sobrepunham-se em cada um múltiplas camadas de vestuário, como estratos
geológicos. O grande gavetão que ficava por baixo das portas espelhadas alojava
um ou outro adereço, cintos, suspensórios, botões de punho, mas também
correspondência em maços atados por cordéis, fotografias, recortes de jornais,
uma variedade de cachimbos — e sobretudo mistérios. Por cima do armário
amontoavam-se caixas de sapatos e de chapéus que um friso trabalhado na parte
anterior e nas laterais escondia na penumbra do quarto.
Recorri àquele móvel em diferentes fases
da minha vida. Inicialmente, usava-o para me esconder de tias beijoqueiras ou
de visitas que não desejava. Na infância, aquilo não era um armário, era uma
sala, a gruta do Aladino, com um cheiro que me acompanharia o resto da vida.
Podia mover-me lá dentro sem sentir uma ponta de claustrofobia, não estava mais
limitado nem menos curioso do que o Robinson Crusoé. Mais tarde visitava-o pelo
Carnaval, como quem se dirige a uma loja de fantasias. Era possível encontrar ali
peças excêntricas, datadas, risíveis, largueironas, de cortes ou cores
extravagantes, que eu combinava da forma mais absurda que me ocorresse.
Visitava-o também sempre que me apetecia sonhar com épocas passadas ou
geografias longínquas, quando me bastava escolher um dos muitos cachimbos para
que novas histórias tivessem lugar naquele quarto. No final da adolescência
morava no guarda-fatos o meu estilista, era ali que eu me fornecia de
indumentária para me imaginar na vanguarda da moda e das atitudes.
Numa das vezes que usei o armário para
compor a figura escolhi uma gabardina. Pareceu-me, por alguma fotografia que vi
na imprensa ou imagem breve na televisão, que o defunto vocalista dos Joy
Division usava gabardinas escuras. Achei lógico. Tinha lido coisas sobre a
banda, conseguira uma cassete, identificava-me com aquele ambiente depressivo e
ao mesmo tempo frenético. Era Verão, mas tinha chovido e a noite ficara um
pouco mais fresca. Razões suficientes, pensei, para procurar no guarda-fatos
uma gabardina. Estava farto das minhas roupas sem dignidade nem estilo, os
trajes gastos e únicos e sem carácter de um filho da baixa classe média
provinciana. Cobri-me com aquela peça, provavelmente militar, e saí para rua
com a auto-estima nos píncaros, ar fatal, passo gingão, cigarro no canto da
boca — a suar demasiado. Atrevi-me a cruzar a praça e a entrar no Luxor, o
melhor café da vila, com uma decoração vagamente colonial. Encostei-me ao
balcão e pedi cerveja.
Contava voltar-me para apreciar o ambiente
como um Humphrey Bogart discreto, mas o que me esperava eram olhares de
escárnio, comentários, risadas, dedos apontados. Eu era o centro das atenções,
mas não porque me distinguisse pela elegância, causasse sensação e inveja.
Em cinco minutos tinha desmoronado o edifício
que diligentemente construíra meia hora antes. Queria colher os frutos da
ousadia, da diferença, mas apenas sentia vergonha. Era só um miúdo ridículo,
demasiado vestido para a estação, que descolorava o cabelo nas fontes com água
oxigenada.
Bebi o fino de um gole e saí de imediato,
cabeça baixa, mais deprimido do que antes, com vontade de ler outra vez sobre o
suicídio do meu ídolo.»
Pedro in Aranda
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