sexta-feira, 27 de julho de 2012

Diário de férias (4)

O dia correu sob o signo da calvície. De manhã, em A Informação*, o puto perguntou: «Papá? Tu és calvinista? Foste sempre calvinista? Como é que ficaste calvinista?» O pai tentava trabalhar: «Tu queres dizer calvo, Marco. Vai brincar para o meio do trânsito.»
O meu velho de Verão, talvez reagindo a um estímulo semelhante ao de Marco perante um tipo enfronhado num livro, deu uns bons-dias traquinas do seu lado do muro, mostrando pela primeira vez uma careca suada e alvacenta onde pousou depois uma boina em padrão de xadrez. Como o troco não foi famoso pela generosidade, ele saiu a resmungar para outro lado, creio que em busca da sua pobre Maria da Conceição.
O passeio da tarde tinha vaga esperança em abetardas ou grous. Não se flana no Alentejo como no Chiado se se alimenta uma mínima paixão de ornitologista. Vai-se atento às bermas e às ondulações da paisagem, às linhas de electricidade e aos postes telefónicos. Pára-se sempre que uma sombra não parece suficientemente estática. E por vezes acontece. À margem do caminho lá estava uma silhueta que tanto podia ser um calhau de costas para o sol como uma sorte maior. Para minha alegria, os calhaus não costumam dar pequenos sacões com o pescoço, e as galinhas, que os dão, costumam ser bem mais pequenas e estar mais próximas das povoações.
Não era ainda uma abetarda (lá virá o dia), mas era um belo, gordo, raro — e careca — abutre-negro. Mirámo-nos durante um bocado na planície amarelecida e seca, como pistoleiros num duelo ao pôr-do-sol. Ele teria aliás esse ânimo (legitimamente, depois de importunado por um curioso de calção e boné). Eu, se ele me deixasse chegar suficientemente perto, abraçá-lo-ia.
Mas, antes que lhe pudesse afagar a careca, o rapaz levantou voo, pesadamente — e com ele todo um bando de calvinistas que se acoitava atrás do morro. 

* Martin Amis, Quetzal.

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