domingo, 22 de julho de 2012

Running Up That Hill*

No caminho para casa, existia uma parede grafitada que Rita apreciava. Não era seu hábito reparar nestas coisas. Ou antes: reparava mas não lhe agradavam, não ficava a admirá-las. A cidade não desenvolvera vocações neste campo, se é que as tinha desenvolvido em algum. A maior parte dos graffiti estavam ao nível das criações dos seus filhos na primária: umas desajeitadas reproduções de lugares comuns. Mas aquela parede fora recentemente brindada com um pouco de talento: os gangues tinham requisitado algum artista de fora, ou um errante Miguel Ângelo dos aerossóis, desses que só se imaginam em filmes ou livros, passou e deixou o seu fresco, a marcar território como um cão o faria. Talvez pelas mesmas razões.
Nos últimos tempos ela iniciara uma rotina temerária. Tinha-se divorciado e queria voltar a experimentar a liberdade, queria estar de novo aberta ao que o mundo tivesse para lhe oferecer. Era em princípio um pouco exagerado como projecto de reabilitação sair para correr depois das onze da noite, como se as coisas de que ela sentia falta fossem nocturnas, noctívagas, mas a verdade é que não conseguira encontrar outro horário para o jogging no meio de tudo o que tinha para fazer. Ter ficado sem um marido não lhe concedera tempo, continuavam a existir os filhos, o trabalho e as horas que perdia em transportes públicos. Mas talvez a escolha do horário fosse consciente, uma necessidade de adrenalina que preenchesse o vazio. O divórcio podia ser apresentado como uma conquista, mas era também uma derrota amarga.
Levava, nos headphones, sob o capuz de rapper que a ajudava a isolar-se, uma selecção musical disparatada. Ou não disparatada: nostálgica. Kate Bush. Ela própria ordenara os temas: Babooshka, Wuthering Heights, Running Up That Hill, e, três ou quatro canções depois, o dueto com Peter Gabriel. Não confessaria a ninguém que ouvira isto anos antes, in illo tempore, e muito menos que o fazia agora. Era parte das coisas que ela reservava para si. Ouvir estas músicas fazia-a imaginar que voava em vez de correr. Havia algo de épico naquele som, na voz. Não lhe custava adivinhar a cantora com uma nova imagem de matrona, quilos a mais, rugas, os ossos a começar a encolher — tinha de se lembrar de ir à Internet ver como ela estava —, mas sentia isso como um sopro benevolente, como uma tia que a amparasse e estimulasse e acariciasse. Ou talvez uma irmã mais velha, afinal não as separavam assim tantos anos. E depois, no fim da selecção, havia aquela voz masculina, rouca, aguda, esforçada, que soava como se tivesse uma sílaba para cada vértebra da sua coluna. Peter Gabriel, agora tão gordo e careca, mas na altura tão perfeito e tão carente, com aquela barba por fazer e a agarrar num desespero encenado mas adorável uma Kate Bush que lhe dizia para não desistir. Era como cortar a meta em primeiro lugar, orgástico dessa forma, e ela abria os braços quando a voz dele soava mais aguda; levantava a cabeça, indiferente aos olhares.
A parede grafitada parecia diferente. Estava a vê-la a uma distância considerável, sem óculos, com os olhos húmidos da brisa nocturna, mas parecia diferente e ela não conseguiu perceber logo porquê. Talvez alguém tivesse desenhado por cima — havia disso, sobreposição de tags, ou lá como se chamava o que eles faziam. Um palimpsesto. Era assim a vida, escrever por cima do que foi erodido. Ou nem isso, não esperar pela acção do tempo.
O que tornava o graffito diferente era uma figura humana. Alguém que adoptava as precauções dos predadores, confundindo-se com as manchas verticais da pintura. Ela continuava a correr e a silhueta ia-se tornando um pouco mais nítida. Tinha um braço levantado, como se segurasse um telemóvel na orelha ou talvez um cigarro pensativo ao lado do rosto. Devia recear? Passava da meia-noite, a rua estava deserta e ela era uma mulher sozinha a fazer jogging, exposta aos elementos. O fato-de-treino folgado não disfarçava as suas curvas. No entanto, era de um género diferente o medo que ela sentia. Talvez nem fosse medo; algo que temer, mas não medo.
Subiu no elevador. As escadas, o esforço adicional de as galgar como remate da prescrição de exercícios que fizera a si própria, ficariam para outra noite. De certa forma, gostava da emoção de ser esperada, ou simplesmente espiada, mas não tinha perdido de todo o bom-senso.
Espreitou pela janela da sala enquanto desenroscava a tampa de plástico de uma garrafa de água. A figura tinha desaparecido, restava a parede tal como ela a via nas últimas semanas. Bebeu a água e virou-se para ir à cozinha preparar um copo de leite quente ou algo que confortasse o estômago antes de dormir. No momento em que avançava na penumbra do compartimento, pareceu-lhe esbarrar em alguma coisa. Não havia ali nada com que pudesse chocar, tanto quando o seu conhecimento da cartografia do apartamento lho lembrava e tanto quanto os seus olhos já habituados à escuridão conseguiam adivinhar. E na verdade não sentiu fisicamente um obstáculo — embora se tivesse detido, como se se tivesse materializado ali alguém que, ombro no ombro, medisse forças consigo. Era aquela coisa dos fantasmas, pensou, dos espíritos. Se somos capazes de imaginar uma presença, ela certamente tem como se manifestar. Dedicou uns segundos a ponderar o fenómeno, a conceber uma voz que lhe dizia das sombras: vês como se quiser te faço parar? Depois reflectiu sobre a sua própria fantasia e deixou de ver habitantes nas sombras. Foi-se deitar.


* In Aranda

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