No caminho
para casa, existia uma parede grafitada que Rita apreciava. Não era seu hábito
reparar nestas coisas. Ou antes: reparava mas não lhe agradavam, não ficava a
admirá-las. A cidade não desenvolvera vocações neste campo, se é que as tinha
desenvolvido em algum. A maior parte dos graffiti
estavam ao nível das criações dos seus filhos na primária: umas desajeitadas
reproduções de lugares comuns. Mas aquela parede fora recentemente brindada com
um pouco de talento: os gangues tinham requisitado algum artista de fora, ou um
errante Miguel Ângelo dos aerossóis, desses que só se imaginam em filmes ou
livros, passou e deixou o seu fresco, a marcar território como um cão o faria.
Talvez pelas mesmas razões.
Nos últimos
tempos ela iniciara uma rotina temerária. Tinha-se divorciado e queria voltar a
experimentar a liberdade, queria estar de novo aberta ao que o mundo tivesse
para lhe oferecer. Era em princípio um pouco exagerado como projecto de
reabilitação sair para correr depois das onze da noite, como se as coisas de
que ela sentia falta fossem nocturnas, noctívagas, mas a verdade é que não
conseguira encontrar outro horário para o jogging no meio de tudo o que tinha para fazer. Ter ficado sem um
marido não lhe concedera tempo, continuavam a existir os filhos, o trabalho e
as horas que perdia em transportes públicos. Mas talvez a escolha do horário
fosse consciente, uma necessidade de adrenalina que preenchesse o vazio. O
divórcio podia ser apresentado como uma conquista, mas era também uma derrota
amarga.
Levava, nos headphones, sob o capuz de rapper que a ajudava a isolar-se, uma
selecção musical disparatada. Ou não disparatada: nostálgica. Kate Bush. Ela
própria ordenara os temas: Babooshka, Wuthering Heights, Running Up That Hill,
e, três ou quatro canções depois, o dueto com Peter Gabriel. Não confessaria a
ninguém que ouvira isto anos antes, in
illo tempore, e muito menos que o fazia agora. Era parte das coisas que ela
reservava para si. Ouvir estas músicas fazia-a imaginar que voava em vez de
correr. Havia algo de épico naquele som, na voz. Não lhe custava adivinhar a
cantora com uma nova imagem de matrona, quilos a mais, rugas, os ossos a
começar a encolher — tinha de se lembrar de ir à Internet ver como ela estava
—, mas sentia isso como um sopro benevolente, como uma tia que a amparasse e
estimulasse e acariciasse. Ou talvez uma irmã mais velha, afinal não as
separavam assim tantos anos. E depois, no fim da selecção, havia aquela voz
masculina, rouca, aguda, esforçada, que soava como se tivesse uma sílaba para
cada vértebra da sua coluna. Peter Gabriel, agora tão gordo e careca, mas na
altura tão perfeito e tão carente, com aquela barba por fazer e a agarrar num
desespero encenado mas adorável uma Kate Bush que lhe dizia para não desistir.
Era como cortar a meta em primeiro lugar, orgástico dessa forma, e ela abria os
braços quando a voz dele soava mais aguda; levantava a cabeça, indiferente aos
olhares.
A parede
grafitada parecia diferente. Estava a vê-la a uma distância considerável, sem
óculos, com os olhos húmidos da brisa nocturna, mas parecia diferente e ela não
conseguiu perceber logo porquê. Talvez alguém tivesse desenhado por cima —
havia disso, sobreposição de tags, ou
lá como se chamava o que eles faziam. Um palimpsesto. Era assim a vida, escrever
por cima do que foi erodido. Ou nem isso, não esperar pela acção do tempo.
O que tornava
o graffito diferente era uma figura
humana. Alguém que adoptava as precauções dos predadores, confundindo-se com as
manchas verticais da pintura. Ela continuava a correr e a silhueta ia-se
tornando um pouco mais nítida. Tinha um braço levantado, como se segurasse um
telemóvel na orelha ou talvez um cigarro pensativo ao lado do rosto. Devia
recear? Passava da meia-noite, a rua estava deserta e ela era uma mulher
sozinha a fazer jogging, exposta aos
elementos. O fato-de-treino folgado não disfarçava as suas curvas. No entanto,
era de um género diferente o medo que ela sentia. Talvez nem fosse medo; algo
que temer, mas não medo.
Subiu no
elevador. As escadas, o esforço adicional de as galgar como remate da
prescrição de exercícios que fizera a si própria, ficariam para outra noite. De
certa forma, gostava da emoção de ser esperada, ou simplesmente espiada, mas
não tinha perdido de todo o bom-senso.
Espreitou pela
janela da sala enquanto desenroscava a tampa de plástico de uma garrafa de
água. A figura tinha desaparecido, restava a parede tal como ela a via nas
últimas semanas. Bebeu a água e virou-se para ir à cozinha preparar um copo de
leite quente ou algo que confortasse o estômago antes de dormir. No momento em
que avançava na penumbra do compartimento, pareceu-lhe esbarrar em alguma coisa.
Não havia ali nada com que pudesse chocar, tanto quando o seu conhecimento da
cartografia do apartamento lho lembrava e tanto quanto os seus olhos já
habituados à escuridão conseguiam adivinhar. E na verdade não sentiu
fisicamente um obstáculo — embora se tivesse detido, como se se tivesse
materializado ali alguém que, ombro no ombro, medisse forças consigo. Era
aquela coisa dos fantasmas, pensou, dos espíritos. Se somos capazes de imaginar
uma presença, ela certamente tem como se manifestar. Dedicou uns segundos a
ponderar o fenómeno, a conceber uma voz que lhe dizia das sombras: vês como se
quiser te faço parar? Depois reflectiu sobre a sua própria fantasia e deixou de
ver habitantes nas sombras. Foi-se deitar.
* In Aranda
* In Aranda
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