segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #5]


A bela adormecida do Mosela

 

 O que havia com aldeias como Beilstein, à margem do Mosela, é que não facilitavam o checkout. Quando por fim conseguíamos deixar de adiar a partida estávamos tão bêbados que nos excedíamos na gorjeta, imbuíamo-nos de uma generosidade maior do que o nosso orçamento, com consequências severas para a vida dos meses seguintes.

Eram essencialmente de dois tipos os visitantes da aldeia: os que iam lá pelo vinho e todos os outros. Eu era um dos primeiros.

Não que ali o vinho fosse diferente do que era servido no resto do vale. O que o lugar tinha de particular era a atmosfera e a missão. Mais do que todas as localidades do Reno e do Mosela, a pequena Beilstein existia para nos servir de beber.

As terras ribeirinhas tinham no vinho o principal negócio, mas naquela ele era o único negócio. Beilstein existia enquanto houvesse gente a sentar-se nas suas esplanadas ou nas suas tabernas a pedir um copo de vinho. Se a região fosse visitada apenas por abstémios apreciadores de paisagem e castelos, Beilstein fechava as portas. Por falência e, sobretudo, honra ferida.

Era o sítio mais pitoresco que por ali se encontrava, com as mais graciosas casinhas de pedra ou de traves à vista, o rio a espraiar-se à sua frente num dos melhores momentos de todo o seu estético e serpenteante deslizar para o Reno. No conjunto — aldeia, vinhas, rio e o castelito no morro — Beilstein era o melhor postal entre Coblença e Tréveris. Isso mesmo atestavam os guias e os serviços de turismo.

Mas, insisto, a razão porque a terra sobrevivia às décadas e se renovava ano após ano não eram os filmes históricos que lá se faziam, nem as hordas que por lá passavam a caminho de Cochem (o melaço do turista) ou de outras localidades mais diversificadas. O que mantinha Beilstein na melhor das formas eram aqueles que, como eu, paravam ali como beduíno em oásis.

Como seria de esperar, esta minha opinião não era partilhada por todos. Havia quem parasse ali para bebericar um chá, uma água ou um sumo e se espreguiçasse nas esplanadas declarando ter encontrado um dos sítios mais acolhedores da sua passeata turística. Pessoas deste género, que puxavam das máquinas fotográficas e faziam o seu clichezito das casas, do rio, da margem oposta (essas mesmas fotos que abundam na Internet). Que se maravilhavam. Mas que, depois, quando chegava a hora de tomar a grande decisão, se metiam no carro ou montavam na bicicleta e subiam ou desciam para outras paragens.

Na verdade, Beilstein não se incomodava com a pusilanimidade do turista médio. Agradecia-a. Havia coisas que não se queria ver obrigada a fazer. Gostava que pela hora de jantar a triagem tivesse sido realizada e que os que se inscreviam para pernoitar fossem de boa estirpe, daqueles que começavam pela carta dos vinhos, dedicavam depois um instante a escolher qualquer coisa sólida para acompanhar e voltavam logo à carta como o crente ao livro sagrado.

A meio de uma manhã de Agosto o hóspede de Beilstein sai do seu quarto e instala-se numa das esplanadas com vista para o rio, com o sol pelas costas. Como é cedo, talvez beba um café a olhar as vinhas ou as casas da margem oposta. Ou talvez observe o trânsito que sobe e desce a marginal, os automobilistas cuidadosos e educados e as ternurentas famílias de ciclistas. Talvez simplesmente dormite, a fazer horas.

Do que certamente não está à espera é de ver chegar uma coluna de blindados (os temíveis Tiger) das Waffen SS e que, em dez minutos, os estabelecimentos da aldeia fiquem tomados pela arrogantes tropas de Hitler.

Pois bem, aconteceu-me a mim no mês passado. Tinha começado por um branco seco frio e umas azeitonas sem caroço (rejeitara o café). Abrira um livro de Antony Beevor numa das secções de imagens e pousava frequentes olhares interrogativos no relampejar do rio (não me lembro o que questionava). O branco seco, como soe acontecer no Mosela — mais do que na Bíblia —, multiplicou-se e ao quarto ou quinto copo fiquei de novo piegas, a choramingar por amores perdidos, ou coisa assim.

Sucede-me de vez em quando, emocionar-me com o vinho, e nessas alturas procurar razões para verter umas lágrimas enquanto cerro muito os olhos e faço um esgar com a boca. Creio que não se me pode censurar.

Mas naquele dia não foi de todo oportuno revelar-me tão sentimental. Um dos militares, depois de ter estacionado o seu panzer em contramão e ignorado a minha surpresa, quis saber porque chorava eu, o que temia. Naturalmente, não me interrogou porque sentisse alguma empatia (era um SS), mas porque se habituara a que as pessoas traíssem os seus segredos na presença daquele uniforme. Na sua opinião, se eu chorava era porque tinha algo a temer.

Claro que eu não tinha nada a temer e naquele momento tudo o que sentia era perplexidade. Não havia nada mais inadequado a Beilstein do que a rispidez nazi, apesar de estarmos na Alemanha. Quis perguntar-lhe qualquer coisa, pedir-lhe alguma espécie de esclarecimento, mas o tipo já tinha decidido o que fazer comigo e eu acabei por me esquecer do que lhe queria perguntar.

Fui levado para as traseiras de um estabelecimento que conhecia bem. Nunca entrara para aquela parte da casa e do que mais me lembro é de ter pensado que a adega era bem menos exuberante do que imaginava: numa vista de olhos pelas prateleiras detectei várias lacunas imperdoáveis. Como me deixaram sozinho por minutos e eu não tinha saca-rolhas, resolvi partir o gargalo de uma garrafa e beber o vinho coado pelo meu lenço de mão (ainda por usar, bem entendido). Mas essa decisão foi um erro, porque os nazis, quando regressaram para me buscar, imaginaram que tencionava usar a garrafa como arma, o que, na sua opinião, no mínimo traía a minha animosidade para com o regime.

Ao meio-dia e quarenta e cinco fui, portanto, encostado a uma parede coberta de hera (essa mesmo que se vê nas fotografias, do lado direito). Ainda assim, creio que não foi a garrafa partida a razão mais forte para aquilo. Talvez o esquadrão andasse algo entediado (afinal, há mais de sessenta anos que não se passava nada) e precisasse de se sentir útil. Por mim, teria ponderado colaborar, se eles tivessem sido delicados o suficiente para o sugerir. Mas, já o disse, eram nazis. Assim, mostrei-me incomodado e afirmei mesmo que dispensava a venda nos olhos. Até me tentei lembrar do que gritou o coronel von Stauffenberg instantes antes de ser fuzilado pela malograda Operação Valquíria. Mas não me ocorreu nada melhor do que o waiter! a que estava habituado. Waiter!, berrei eu, e foi-me servido um raro tinto. Reservado para os que vão morrer, sussurrou-me o empregado, condoído, talvez por ser um daqueles vinhos cor de sangue que ninguém gostava de verter em toalhas de linho.

Mas as armas não foram disparadas (doutra maneira eu não teria sobrevivido para contar a história). No último segundo, uma onda gigantesca percorreu o Mosela, uma espécie de tsunami fluvial com origem numa tromba-d’água violentíssima que caíra sobre o troço francês do rio, um desses fenómenos mutantes a que o clima estava agora sujeito. O pelotão de fuzilamento e eu próprio fomos levados pela enorme massa de água que transbordou do leito antes mesmo que a alguém ocorresse a famosa abertura de Cem Anos de Solidão.

Durante uns longos segundos rebolei naquela maré cheia de detritos e quando parei finalmente foi porque bati com as costas num dos tanques estacionados ao longo da estrada. A corrente continuava rápida, embora a onda tivesse passado, e as margens permaneciam afundadas numa das maiores cheias de que havia memória. Houve vários mortos e felizmente alguns deles eram nazis, incluindo o comandante, o que deixou a tropa desorientada e me permitiu pensar em movimentos evasivos.

Subi pela lagarta ao canhão de 88 milímetros como naquelas imagens famosas e efémeras da Primavera de Praga. Talvez o panzer pudesse avançar contra a corrente e levar-me ao hotel, mas eu não saberia como o pôr em andamento. Escalei, por isso, o muro da vinha e procurei chegar à aldeia pelo lado de cima da encosta.

Era uma desolação ver a praça inundada, as esplanadas arrasadas, o rés-do-chão das casas submerso e o seu interior saqueado pela violência da água. Nenhuma adega daquele sector da aldeia, o mais baixo e o mais rico, teve qualquer hipótese. Décadas de colheitas seleccionadas foram simplesmente pelo ralo, como restos de um banquete.

Pensei organizar com os sobreviventes da parte alta da aldeia alguma espécie de operação de salvamento, mergulhar nas adegas sujeitados por uma corda e recuperar aquilo que a corrente não tivesse levado. Mas fui distraído desta ideia pelos gritos insistentes de sete homenzinhos que vieram até mim e me puxaram pelas roupas. Parece que havia alguém em apuros, uma mulher que não acordara a tempo de evitar a inundação.

Há alguns anos que eu evitava mulheres em apuros. Era um mantra que recitava ao acordar e que me deixava feliz se ao chegar ao fim do dia o tivesse cumprido. Vivia para esse objectivo, um dia de cada vez, como os alcoólicos anónimos. Tinha, aliás, passado por uma dessas instituições (apenas para aprender o método). E o sucesso era tão grande que nos últimos tempos me era já difícil lembrar porque devia evitar mulheres em apuros.

Mas os anos de auto-condicionamento tinham agora de ser interrompidos, porque aqueles sete homenzinhos pequenos (creio que eram anões) não paravam de apelar ao que de mais humano havia em mim. A senhora fora subtraída ao seu quarto pela água, mas miraculosamente ficara presa nos ramos de uma das árvores que bordejavam o que era agora o rio. Vista dali, parecia um cadáver numa espécie de pira, só que os anões teimavam que não estava morta, apenas adormecida.

Mergulhei na corrente, que nesta parte em forma de baía era mais calma, e enquanto nadava fui-me perguntando por que raio não se tinha lançado à água nenhum daqueles sete minorcas.

Eram cinquenta metros até lá, pelo que tive tempo de reflectir. Talvez eu devesse ser menos complacente com os acontecimentos insólitos. Não era a primeira vez que a vida conspirava contra mim. Havia sobretudo que ter em conta as manobras de diversão, ocorrências sem vínculo aparente que não tinham outro objectivo senão desconcentrar-me. Estaria a ser vítima de mais uma dessas urdiduras?

A mulher não tinha aspecto de estar em apuros, tão plácida se apresentava naquele seu altar de ramos e detritos entrelaçados. Mas o que aconteceria quando ela despertasse? Resolvi, apesar de todos os sinais, ser menos supersticioso e mais magnânimo. Icei-me para o seu lado e encetei os procedimentos da técnica de reanimação. Encostei a minha boca à dela e…

Três semanas depois casámo-nos, como eu temia.


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