segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Santa Úrsula e os comunistas

Reza o Martirológio Romano (catálogo de santos) que Santa Úrsula (séc. IV) morreu mártir às mãos dos hunos em Colónia, na Alemanha, acompanhada de 11.000 outras virgens. A descoberta no século XII de um vasto cemitério no exterior da muralha levou a que os católicos vissem ali confirmada a lenda e logo empilharam as ossadas numa igreja de homenagem à mártir e seu séquito.

Num momento da História, descobre-se que o exagerado número de mártires pode dever-se à interpretação errada das iniciais numa inscrição antiga, que leu «onze mil virgens» onde estaria «onze mártires virgens». Exames de ADN revelam entretanto que as ossadas encontradas são anteriores, do tempo dos romanos. Nada disso demoveu os peregrinos (nem os editores dos martirológios), que continuaram a comparecer na Igreja para louvar os 11 mil crânios e as 22 mil tíbias virgens. (Parece que não estão lá tantos ossos, mas que se há-de fazer.)

Esta edificante história — contada pelo narrador de “Elizabeth Finch”, de Julian Barnes — fez-me lembrar alguns comunistas dos nossos tempos. A História e a Ciência podem ter descoberto muitas coisas sobre a Rússia e as suas virgens, mas eles, irmanando-se no grau de devoção a velhos católicos ultramontanos, hão-de ir sempre ali peregrinar com fervor — como se as ossadas dos gulags, deste século ou do outro, fossem de louvar, não de lamentar.

Algumas reacções à morte de Alexei Navalny, não obstante o defeitos que se queiram apontar ao defunto, mostram como já era bem tempo de os comunistas actualizarem o seu próprio catálogo de santos. Ou mártires.

Sem comentários:

Enviar um comentário