domingo, 4 de fevereiro de 2024

[Alterações Climatéricas #2]


Despedida de solteira


Estavam ali há dois dias e a mulher não sabia quando ia aquilo terminar. Eram já talvez menos de meia centena, não se conseguia ver toda a gente. Cada um tinha-se agarrado de imediato a uma das árvores jovens da avenida ou a um poste, mas muitos foram os que não o lograram e se perderam. À hora em que tudo começou, não havia muitas pessoas na rua, o que amenizara a tragédia, mas mesmo assim ela imaginava que uns duzentos transeuntes, só naquele quarteirão, tivessem simplesmente sido levados.

O vento surgiu com violência extrema no minuto que precedeu a queda da noite e a iluminação pública já não se acendeu. Quando alguns tentaram vencer o choque e tomar consciência do problema não havia luminosidade para avaliar com clareza as circunstâncias. A maior parte começou de imediato a gritar, em pânico, o que impediu durante um par de horas a comunicação e qualquer tentativa de reagirem colectivamente.

A mulher, como decerto vários dos outros, experimentou por vezes soltar-se, mas no momento em que o fazia via-se obrigada a recuar para a relativa segurança do seu apoio. Tudo acontecia como se alguém ou alguma coisa estivessem atentos aos seus movimentos e a eles se opusessem. O vento parecia acalmar quando estavam bem agarrados, mas levantava-se de novo se alguém fazia menções de arriscar uma corrida para o umbral de uma porta.

Quatro deles tinham experimentado um cordão humano através do passeio, segurando-se mutuamente pelos braços para tentarem atingir a entrada de um prédio, mas a resposta da intempérie foi terrível e dois foram arrastados pelo cimento. Nos minutos seguintes, como que em retaliação, sopraram rajadas tão fortes que todos os que estavam na rua sentiram os pés levantar-se e o corpo projectar-se na perpendicular do respectivo apoio. Era absurdo, mas dir-se-iam bandeirinhas em mastros, a drapejar a meia haste. Salvaram-se os que, apesar do desespero, tiveram o instinto e a força para se cingirem mais e não saírem a voar.

Depois foram devolvidos ao chão e no resto da noite não tiveram mais atrevimentos. Limitaram-se a envolver firmemente a árvore ou o poste que lhes coubera — colocando-se do lado do vento para não terem de confiar apenas na força dos braços — e a esperar que o fenómeno se mantivesse numa intensidade suportável.

De madrugada, com o cansaço, tinham caído de joelhos, sentando-se alguns sobre as pernas, sem deixarem de abraçar o esteio. Ninguém dormiu.

O dia amanheceu cinzento e, desoladamente, ainda ventoso. Para além dos inúmeros detritos que o vento fazia rolar pela rua ou pairar em remoinhos à altura dos rostos, não havia qualquer outro movimento. Não havia trânsito nem acções da protecção civil. A vida urbana e as operações de socorro estavam suspensas à espera que a situação mudasse.

A cidade mostrava-se esventrada, as rajadas mais fortes tinham arrancado elementos das coberturas e das fachadas dos edifícios. Viam-se árvores derrubadas e abundância de galhos no chão. Os contentores de lixo tinham sido tombados e a espaços deslizavam pelo pavimento. Havia automóveis voltados. Fora uma sorte não terem sido atingidos por nenhum objecto nos piores momentos, quando o vento soprara com ira infernal. Era, de toda a maneira, um milagre terem sobrevivido tantos.

Embora a luz do dia desse à situação um aspecto menos desesperado, todos concordavam interiormente que não estavam salvos. O ar uivava ainda de forma assustadora, revolvendo os cabelos e as roupas. A via pública parecia um rio cuja corrente transportava os despojos da tempestade.

Ao final da manhã, houve alguém mais ousado — ou alguém que desesperara. Um homem, dos que ficaram retidos no outro lado da rua, soltou-se do seu poste com um brado vitorioso e saiu a correr para o túnel do metro. Infelizmente, quando parecia prestes a agarrar-se ao gradeamento das escadas — permitindo a todos os outros, que o observavam com atenção, alimentar a esperança —, o vento levantou-se como nas vezes anteriores e de novo a rua ficou por instantes decorada com bandeirinhas humanas.

À tarde, a fome veio juntar-se aos demais incómodos: deram-se conta de que tinham saltado algumas refeições. Felizmente, por entre os habitantes do bairro, que espreitavam pelas janelas com inquietação e impotência, houve o mesmo pensamento. Alguns dos vizinhos apiedaram-se e mostraram coragem. Em diferentes momentos, quatro ou cinco portas abriram-se por breves segundos e, com um grito de alerta, garrafas de água, iogurtes líquidos, fruta e diversas embalagens de comida foram arremessadas como bolas de bowling ao encontro daqueles que tinham sido apanhados pelo temporal. A maior parte da comida perdeu-se, porque a precipitação dos lançadores e a força variável do vento a fazia passar demasiado longe do alcance. Mesmo assim, conseguiam apanhar uma ou outra peça. Por vezes, nenhuma daquelas que tinham sido lançadas pelos moradores dali, mas alguma das que vinham a rolar pela rua, resultado da generosidade de um ou outro quarteirão mais adiante.

As árvores e postes que serviam de esteio eram também aquilo que servia de escudo, sempre que o vento trazia objectos maiores capazes de ameaçar a integridade dos que ali permaneciam. Um contentor do lixo ou uma chapa de cobertura eram instrumentos mortíferos que os obrigavam a passar para o lado oposto do apoio e a perfilar-se o mais possível.

A seguir aos momentos de maior força do vento, que ocorriam sempre que alguém ponderava uma fuga, houve quem amarrasse uma das pernas (ou braço) ao poste com o cinto, para o caso de as suas forças cederem. O que acontecia frequentemente: ao longo das horas, o número dos sobreviventes tinha vindo a diminuir, num conta-gotas macabro.

De vez em quando, um corpo que se desprendia chocava violentamente com outra pessoa, agarrada à protecção seguinte, e o número de vítimas duplicava. Numa ou outra ocorrência, o infeliz que saía a rebolar da sua protecção era resgatado por um dos que se encontravam no seu percurso. Mas não por muito tempo: era mais difícil manterem-se duas pessoas no mesmo apoio e o mais fraco (ou os dois) acabava por se soltar definitivamente.

Nas proximidades da mulher havia dois homens, ninguém que ela conhecesse. Quando falavam uns com os outros, tinham de levantar a voz, para se sobreporem ao vento, que soava como música demasiado alta. Dado que a conversa implicava esforço, tentavam não falar muito e reservar a energia para a tarefa principal (permanecerem agarrados e vivos). No entanto, conversar era também uma forma de manterem alguma serenidade. A partilha amenizava o desespero.

Um dos homens era casado e lamentava nada saber da sua família, de quem contou diversos episódios amorosos e comoventes. Rezava para que tivessem chegado cedo a casa. O outro começara por se preocupar com o carro, um BMW novo em folha que não tivera tempo de meter na garagem, mas depois fora-se cingindo ao essencial, acabando verdadeiramente assustado com a ideia de morrer sem ter tempo de emendar uma ou duas coisas que fizera de muito errado na vida. A mulher queixou-se por nenhum dos vizinhos se ter lembrado de enviar bebidas alcoólicas, o que mais jeito agora lhes daria. Tentava a via do humor, ou de facto necessitava de beber. Por mais de uma vez, também se lamentou por ter ficado sem a bolsa, onde tinha o tabaco, e um dos homens, num momento mais calmo, acabou por lhe lançar um maço, com o isqueiro dentro, declarando ser aquele um bom dia para deixar de fumar.

Por volta da uma da manhã da segunda noite, enquanto tentava sem sucesso acender mais um cigarro protegendo-se do vento, a mulher declarou indiferentemente que iam morrer, provocando no grupo um silêncio grave. Depois, com algum acinte, exortou os seus companheiros de infortúnio a proferirem as suas famous last words, talvez não tivessem já muito mais tempo. Como nenhum abrisse a boca, decidiu sentar-se no chão, aborrecida e cansada, e confiar que a ninguém ocorresse provocar a ira do vento durante o resto da noite.

 

Quando abriu os olhos na manhã seguinte, despertada do torpor pela primeira claridade, descobriu que nenhum dos homens estava no seu lugar. Não havia, aliás, vivalma em toda a rua. Dir-se-ia que ninguém excepto ela sobrevivera ao fenómeno climatérico.

Era um amanhecer sereno, de um silêncio completo, sem a mínima aragem. Um amanhecer absurdo, que a fazia imaginar-se a infeliz sobrevivente de um holocausto nuclear, a última mulher na Terra. A rua deserta e juncada de lixo corroborava aquela sensação. Soltou-se do poste e tentou os primeiros passos cambaleantes. Sentia-se como na ressaca de uma noite de bebedeira. Ao longe viu um movimento e, depois de esfregar os olhos, percebeu que se tratava de um táxi, que avançava pela rua suja abrindo caminho como um blindado num campo de batalha. Instintivamente ergueu o braço.

Nesse momento, notando que usava uma pulseira que dizia «Bride», lembrou-se que era o dia do seu casamento e pareceu-lhe que de novo o vento se levantava impedindo-a de caminhar. Correu para a árvore mais próxima e vomitou, agarrada ao tronco.


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