domingo, 4 de fevereiro de 2024

[Há década e meia imaginei uma série de contos chamada “Alterações Climatéricas”. Foram precisas 19 historietas para me convencer do fracasso da empresa. Esta era a 16.ª. Não era das piores, acreditem.]


À espera do dealer

 Ali estão eles, mais uma vez. Chegam numa pressa patética, como se fossem as pessoas mais ocupadas do mundo, e depois sentam-se nos bancos da rua, impacientes mas apáticos. De vez em quando, um deles levanta-se e sai novamente disparado, a oscilar muito os braços, como se se tivesse lembrado de uma coisa importantíssima que tivesse deixado por fazer. Mas regressa, e volta a imobilizar-se num dos bancos, ou numa esquina qualquer da rua.

Não olham para nada em particular. Estão apenas ali, à espera, com as suas carinhas grotescas, uma trupe de circo de horrores. Parecem predestinados para o vício. Há algo de feio neles que é anterior às porcarias que metem no organismo. Talvez a droga prefira gente assim.

Outros, certamente, ficam ainda mais desfigurados por andarem naquilo. Enruga-se-lhes a pele, ganham bexigas ou crostas, caem-lhes os dentes, tornam-se corcundas ou defeituosos dos membros. Uma espécie de leprosos, mas destes nem Cristo se apiedaria.

É a hora do almoço e ele está a observá-los da janela do primeiro andar. A rua é pedonal e tem umas arvorezinhas que dá gosto ver. Mas também atrai a escória da sociedade e não é fácil ignorar o que se passa lá em baixo. Como aquela prostituta velha, que atravessa por ali para chegar ao seu posto de ataque. E para regressar a casa. Ah, como ele gostaria de almoçar um dia desfrutando apenas dos jacarandás em flor.

O tempo ameaça trovoada (quase se sente a electricidade) e ele pergunta-se quais serão os requisitos para um dilúvio. Deus já lavou a terra uma vez à força de muito chover, porque não repetir o feito? Para o caso que o incomoda, não seria preciso um caudal bíblico — uma simples monção estaria bem. Chuva a cântaros em cima daquela gentalha durante uns dez minutos e a rua ficaria desimpedida o tempo suficiente para ele acabar de almoçar à janela sem ter de assistir às misérias do mundo.

Mas no fundo sabe que isso não acontecerá. Tem sido assim a semana inteira, a ameaça anunciada na televisão mas nunca concretizada de um dilúvio purificador. Os drogados à espera do dealer, que mais tarde ou mais cedo aparece. A prostituta no seu vaivém. Ele esperançado num gesto divino. E a tarde entrando afinal soalheira, zombeteira. Dá vontade de praguejar.

Lá vem ela, a puta velha. E os anormais a olhar. Já não têm forças para uns piropos — o que seria o mínimo de esperar de gente da sua laia. A verdade é que também não têm dinheiro para a mulher (vai todo para o vício) — nem para aquele destroço têm dinheiro. E, se tivessem, faltar-lhes-ia o vigor, não seriam homens suficientes, com o organismo todo corroído e as partes mirradas.

Olá, agora vêm as adolescentes, as putinhas do bairro. Estas, meus amigos, não são para os vossos dentes, nem em sonhos. Tão puras que elas parecem, tão virginais. Bem, na verdade não parecem nada disso, e no que lhe concerne deixava-as ir no dilúvio junto com os outros todos. O bairro inteiro está precisado de uma purga e ele não vê razão nenhuma para deixar estas meninas de fora. Talvez haja, pelo contrário, razões maiores para eliminar aquela fonte de pecado. Sim, para ser totalmente honesto, aquele grupinho tem feito mais pela perdição da sua alma do que os junkies e as putas adultas todos juntos. Oh, Deus, como tem ele lutado por vencer a tentação. E como tem sido derrotado nessa luta.

(Ainda assim, agradece todos os dias fervorosamente estar livre do vício de outros, daqueles que não resistem aos rapazinhos.)

Resolve atacar a sobremesa antes que venha de novo o impulso onanista, que tanto o tem consumido física e espiritualmente. Enquanto come a tarte de morangos, segurando talheres em ambas as mãos para as ter ocupadas, reza, reza furiosamente. Quer invocar Deus, fazê-lO presente, mais presente do que o peões do Demo que desfilam debaixo da sua janela, mais presente do que O tem sentido nos últimos tempos, ou do que alguma vez O sentiu. Mastiga com voracidade e pronuncia as palavras sagradas de boca cheia, abana o torso para a frente e para trás como o raio de um judeu.

Talvez não lhe tenham ensinado as fórmulas correctas. Ainda ontem viu um filme que o surpreendeu ao mostrar-lhe um ritual muçulmano diferente, uma forma de rodopiar sobre si próprio até ao êxtase, como certas danças tradicionais mas mais intenso. Talvez a culpa não seja dele, mas dos insípidos rituais católicos, que carecem de misticismo e eficácia. De intensidade!

De qualquer modo, são horas de ir embora. O tempo para o almoço já passou e os deveres não podem ser adiados. Era bom que a chuva viesse de uma vez e lavasse a rua e com isso a sua alma. Mas tudo indica que não vai ser hoje, a meteorologia terá de engolir outro sapo, o quinto da semana. Prova de que também a ciência falha.

Deixa os pratos na mesa, vai à casa de banho, recolhe no escritório aquilo que precisa para as ocupações da tarde e desce as escadas. Ao abrir a porta da rua, a chuva cai, quando já não a esperava, com intensidade tropical, e ele pragueja. Que raio de timing. Já não poderá desfrutar da debandada da escumalha.

Estica o pescoço para a rua para tentar ver as corridinhas irritadas da triste fauna do bairro, mas nenhum dos drogados se mexe. Estão firmes nos bancos, como se a hora de espera fosse para cumprir com a mesma apatia de sempre. A vontade dos Céus é-lhes indiferente. O dealer há-de vir, parecem dizer os seus rostos dantescos, cabe-nos esperar com resignação, nem que chovam picaretas. Ele ia pensar numa analogia com algo que lhe era próximo, mas decidiu que chegava de perder tempo.

Merda, praguejou mais uma vez. Tinha o carro na outra ponta da rua e não havia nenhum guarda-chuva em casa. Ia ter de correr e suportar os olhares de escárnio. Aquela gente não arredava pé e ele não podia esperar que o tempo aliviasse, estava mesmo em cima da hora. Em vez de espectador, seria protagonista de uma corrida à chuva.

Cobriu-se com a estola, que tirou de entre os livros, e meteu-se à enxurrada, com os olhos fixos no chão. A batina arrastava um pouco e estava a ficar ensopada. Ia ter de repreender a menina Gertrudes: fartara-se de dizer que gostava dos paramentos com a bainha curta. 


Sem comentários:

Enviar um comentário