À espera do dealer
Não
olham para nada em particular. Estão apenas ali, à espera, com as suas carinhas
grotescas, uma trupe de circo de horrores. Parecem predestinados para o vício.
Há algo de feio neles que é anterior às porcarias que metem no organismo.
Talvez a droga prefira gente assim.
Outros,
certamente, ficam ainda mais desfigurados por andarem naquilo. Enruga-se-lhes a
pele, ganham bexigas ou crostas, caem-lhes os dentes, tornam-se corcundas ou
defeituosos dos membros. Uma espécie de leprosos, mas destes nem Cristo se
apiedaria.
É
a hora do almoço e ele está a observá-los da janela do primeiro andar. A rua é
pedonal e tem umas arvorezinhas que dá gosto ver. Mas também atrai a escória da
sociedade e não é fácil ignorar o que se passa lá
O
tempo ameaça trovoada (quase se sente a electricidade) e ele pergunta-se quais
serão os requisitos para um dilúvio. Deus já lavou a terra uma vez à força de
muito chover, porque não repetir o feito? Para o caso que o incomoda, não seria
preciso um caudal bíblico — uma simples monção estaria bem. Chuva a cântaros em
cima daquela gentalha durante uns dez minutos e a rua ficaria desimpedida o
tempo suficiente para ele acabar de almoçar à janela sem ter de assistir às
misérias do mundo.
Mas
no fundo sabe que isso não acontecerá. Tem sido assim a semana inteira, a
ameaça anunciada na televisão mas nunca concretizada de um dilúvio purificador.
Os drogados à espera do dealer, que
mais tarde ou mais cedo aparece. A prostituta no seu vaivém. Ele esperançado
num gesto divino. E a tarde entrando afinal soalheira, zombeteira. Dá vontade
de praguejar.
Lá
vem ela, a puta velha. E os anormais a olhar. Já não têm forças para uns
piropos — o que seria o mínimo de esperar de gente da sua laia. A verdade é que
também não têm dinheiro para a mulher (vai todo para o vício) — nem para aquele
destroço têm dinheiro. E, se tivessem, faltar-lhes-ia o vigor, não seriam
homens suficientes, com o organismo todo corroído e as partes mirradas.
Olá,
agora vêm as adolescentes, as putinhas do bairro. Estas, meus amigos, não são
para os vossos dentes, nem
(Ainda
assim, agradece todos os dias fervorosamente estar livre do vício de outros,
daqueles que não resistem aos rapazinhos.)
Resolve
atacar a sobremesa antes que venha de novo o impulso onanista, que tanto o tem
consumido física e espiritualmente. Enquanto come a tarte de morangos,
segurando talheres em ambas as mãos para as ter ocupadas, reza, reza
furiosamente. Quer invocar Deus, fazê-lO presente, mais presente do que o peões
do Demo que desfilam debaixo da sua janela, mais presente do que O tem sentido
nos últimos tempos, ou do que alguma vez O sentiu. Mastiga com voracidade e
pronuncia as palavras sagradas de boca cheia, abana o torso para a frente e
para trás como o raio de um judeu.
Talvez
não lhe tenham ensinado as fórmulas correctas. Ainda ontem viu um filme que o
surpreendeu ao mostrar-lhe um ritual muçulmano diferente, uma forma de rodopiar
sobre si próprio até ao êxtase, como certas danças tradicionais mas mais intenso. Talvez a
culpa não seja dele, mas dos insípidos rituais católicos, que carecem de
misticismo e eficácia. De intensidade!
De
qualquer modo, são horas de ir embora. O tempo para o almoço já passou e os
deveres não podem ser adiados. Era bom que a chuva viesse de uma vez e lavasse
a rua e com isso a sua alma. Mas tudo indica que não vai ser hoje, a
meteorologia terá de engolir outro sapo, o quinto da semana. Prova de que
também a ciência falha.
Deixa
os pratos na mesa, vai à casa de banho, recolhe no escritório aquilo que
precisa para as ocupações da tarde e desce as escadas. Ao abrir a porta da rua,
a chuva cai, quando já não a esperava, com intensidade tropical, e ele
pragueja. Que raio de timing. Já não
poderá desfrutar da debandada da escumalha.
Estica
o pescoço para a rua para tentar ver as corridinhas irritadas da triste fauna
do bairro, mas nenhum dos drogados se mexe. Estão firmes nos bancos, como se a
hora de espera fosse para cumprir com a mesma apatia de sempre. A vontade dos Céus é-lhes indiferente. O dealer
há-de vir, parecem dizer os seus rostos dantescos, cabe-nos esperar com
resignação, nem que chovam picaretas. Ele ia pensar numa analogia com algo que
lhe era próximo, mas decidiu que chegava de perder tempo.
Merda,
praguejou mais uma vez. Tinha o carro na outra ponta da rua e não havia nenhum
guarda-chuva
Cobriu-se
com a estola, que tirou de entre os livros, e meteu-se à enxurrada, com os
olhos fixos no chão. A batina arrastava um pouco e estava a ficar ensopada. Ia
ter de repreender a menina Gertrudes: fartara-se de dizer que gostava dos
paramentos com a bainha curta.
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