Inundação
As chuvas tinham sido anunciadas, mas ninguém pudera
imaginar uma coisa daquelas. Excepto ele, que estava disponível para imaginar
tudo o que lhe mantivesse a mente distraída. Imaginar era, aliás, o que lhe
restava, já que o mundo real ficara reduzido aos vinte metros quadrados de uma
cela colectiva, com raras saídas para o pátio da prisão.
Nunca ignorara que uma vida de prisioneiro seria dura demais
para alguém como ele. Mas nem agora que pudera confirmar pessoalmente os
horrores da penitenciária se arrependia do que fizera, caso por uma falha na
sua rotina mental se deixasse pensar um pouco no assunto. Os colegas de cela
tinham-no por pensador, alguém que cismava diariamente, que remoía os remorsos
do que fizera ou os erros de planeamento que o tinham conduzido ali. Gozavam
com ele por causa disso, como naturalmente gozariam a propósito de outra coisa
qualquer. O quotidiano da prisão confirmava os seus piores receios e ele —
tímido, frágil sob a falsa corpulência dos quilos a mais, e medroso — era a
vítima perfeita de uma comunidade que vivia em tensão permanente.
Nas primeiras semanas, sonhara muitas vezes com a solitária, com formas de provocar a ira
da direcção do presídio, uma ira que o conduzisse ao sossego do isolamento sem
necessariamente o submeter a sovas demasiado violentas. Mas cedo descobriu que
não existia tal coisa no sistema prisional. A doutrina em vigor falava de
socialização, partilha, igualdade de tratamento e de deveres, participação na
gestão do espaço comum e uma série de tretas do mesmo género. Tinha de se
integrar ou conseguir morrer de um ataque cardíaco auto-infligido, já que todos
os meios que permitissem o suicídio tinham sido cuidadosamente removidos e a
vigilância era permanente, havia um Big Brother caridoso e pró-vida a
zelar pelos detidos.
De modo que o Inferno para ele, que naquele dia não teve os recursos para disparar sobre si próprio ou presença
de espírito suficiente para se lançar de um viaduto sobre o trânsito da cidade,
começou ainda em vida, no momento em que entrou na penitenciária da comarca.
Bem, na verdade começou antes. Micaela era o demónio em
carne e osso e era disto que ele não se arrependeria se se permitisse pensar no
assunto: de lhe ter terminado com a raça.
Não foi uma decisão fácil nem rápida. No início nem era uma
decisão, mas a centelha de uma ideia, a esperança vaga de que se alimentavam os
seus dias. Começou por lhe desejar a morte. Uma morte natural — todos estavam
sujeitos a achaques. Depois deixou de o repugnar que ela falecesse num acidente
de carro. Ou de avião, já que gostava tanto de cruzar o Atlântico. Por fim,
convenceu-se de que a saúde de Micaela era de ferro e que as tragédias se
mantinham longe dela. A única fraqueza da mulher era ele próprio, como ela não
se cansava de dizer.
Houve um tempo em que se enchia de orgulho de cada vez que
ela dizia aquilo. Ele era a fraqueza de alguém como Micaela, nada menos do que
isso. Depois tornou-se escravo dela e, numa fase seguinte, o bibelô de que ela
punha e dispunha quando se sentia no apogeu da sua superioridade moral. Nos
últimos tempos era a vítima da sua fúria, dos seus ciúmes (ele!), da sua
paranóia.
Deu cabo de Micaela com uma marreta. Mas escolheu mal a
arma, porque não tinha como a usar sobre si próprio, era demasiado pesada para
ser brandida com eficácia contra a própria pessoa e contra o instinto de auto-preservação.
E agora ali estava ele.
A vida na prisão era um prolongamento da vida que ele tivera
nos últimos tempos lá fora, com a agravante de que o número de torturadores
tinha aumentado. Cada um dos condenados que lhe faziam companhia na cela
gostava de o considerar, em diferentes momentos, confidente, cúmplice, mascote,
criado, parceiro sexual ou saco de porrada. Oficiosamente, concluía ele, o
sistema ou a vida ou os deuses lá em cima pediam-lhe que se deixasse abraçar
pela esquizofrenia, mas ele não conseguia deixar de se manter lúcido.
Ah, não o tocarem, não lhe falarem, e ele não os ouvir nem
os ver. Ah, estar na cela como no meio de uma rua movimentada de uma grande
cidade, onde ninguém se conhece nem se fala e todos são anónimos. Ou no meio de
um bosque impenetrável, no deserto, no cimo de uma colina remota. Fértil em
crueldades, o sistema prisional acabou com a velha e clássica solitária, aquilo
que lhe poderia salvar a vida.
E então a chuva foi subitamente anunciada e caiu, com força,
perseverante, incansável. Foi no rádio dos guardas que ouviu o alerta. Claro
que, apesar do tom histérico da protecção civil, ninguém esperava um dilúvio, e
quando a água entrou às golfadas por baixo da porta, fazendo boiar a merda dos
que insistiam em cagar nos cantos, os prisioneiros seus colegas mostraram os
primeiros indícios de humanidade, de uma humanidade temente a Deus. Ele parou pela
primeira vez com o tique nervoso que lhe fazia tremer o punho onde assentava o
queixo.
Em menos de uma hora a água chegou à cintura dos detidos e,
por mais que tivessem berrado, ninguém lhes abriu a porta, ninguém se preocupou
com o seu destino. Não custava perceber que os guardas tinham abandonado as
instalações ou subido aos pisos superiores para salvar a pele.
A inundação, nos seus primeiros momentos, aumentou o caos na
cela. Todos praguejavam e se empurravam como se fosse possível encontrar
naqueles vinte metros quadrados um culpado ou um salvador. Inevitavelmente, ele
era o candidato que todos preferiam e foram-lhe exigidas explicações, soluções,
e cada um dos outros lhe aplicou uma bofetada ou um soco como paga do seu
silêncio.
Com o nível freático a atingir a altura do peito, os detidos
subiram literalmente às paredes, agarrando-se onde puderam. Por uma vez em
meses, o centro da cela tornava-se um local solitário e ele manteve-se ali, com
uma alegria primitiva, recordando-se com prazer de todos os momentos na vida em
que pôde estar só. No perímetro do compartimento, onde os outros tentavam
encontrar formas de se elevar acima das águas, os gritos eram desesperados e ensurdecedores,
mas a ele parecia-lhe que também o silêncio lhe fora finalmente concedido.
A água subiu mais um pouco e ele sentiu-se a ser erguido do
chão; perdia o pé e ganhava um bem-estar quase esquecido. Mais ninguém ali
sabia nadar, pelo que, no meio do pânico colectivo, ele era olhado com uma inveja
inaugural e uma última raiva.
O pé-direito da cela media quatro metros, o que tornou longa
a agonia geral e a ele lhe proporcionou minutos extra de solidão. Ninguém agora
se atrevia a vir até ali ao centro para o incomodar. Estava só, o mundo em
ebulição à sua volta e ele a ignorá-lo, a vogar e a rodar lentamente na
superfície da água, entregando-se lentamente à maré com pequenos movimentos das
mãos e das pernas.
Os primeiros prisioneiros, os que não conseguiam forma de
subir até ao tecto, começavam já a afogar-se, e todos outros, ele incluído,
tinham agora menos de trinta centímetros de espaço para respirar. Achou
divertida a forma como alguns levantavam a cabeça, ofegantes, parecendo peixes
a querer beijar o cimento do tecto. Outros, como ele, inclinavam a cabeça, o
que o fez lembrar a sala de tribunal descrita por Kafka
Dois guardas de aspecto brutal, agarrando-o pelos cabelos,
retiraram-lhe a cabeça da sanita, de novo entupida, e arrastaram-no pelo
corredor. Iam mudá-lo de cela, para uma onde não corresse o risco de se afogar
a si próprio. Lá fora ouvia-se a intempérie. «Nunca vi chover assim na minha
vida», disse um dos guardas, com um tom preocupado.
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