quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Monsenhor, passando de bicicleta

[Do baú:]

“mas vós monsenhor dando ao pedal/ como abrandais a minha têmpera/ até a transformardes/ num veludo de rosas/ que vos saúdo tiro o boné aldeão/ faço o sinal da cruz mal imitado/ / a ver se atravessais a praça/ sem bater no lancil”

Fernando Assis Pacheco, “Monsenhor, Passando de Bicicleta”, Respiração Assistida

Monsenhor, passando de bicicleta, pragueja. Vai atrasado quarenta anos. Que não o impeça ninguém. É melhor que abram alas, despejem as ruas, proíbam o trânsito; arranjem-lhe uma escolta de motos e polícias uivantes. Das beatas não quer ver-lhes pinta de negrura, seja o vulto que se ergue em trajes inteiriçados de virtude, seja a sombra que mais honestamente se prostra nos paralelos da calçada. Os seus pares que voltem aos afazeres, joguem cartas, que vão rezar missas ou o que lhes apeteça. O senhor bispo fique-se pelas epístolas obesas sem receptor ilustrado, pela catequização dos espelhos do seminário, que lamente, se quiser, a falta de vocações e lombos para arrear sotainas.

Monsenhor, passando de bicicleta, retorce a beiça. À saída do quintal sacrossanto, do condomínio episcopal, a rua resolve ser ladeira, coisa pouco própria para pernas de sessenta anos. Mas monsenhor retorce a beiça porque está zangado, as pernas que façam, sem lamentos nem quebranteiras, este último servicinho, castigo pequeno para membros cobardes, que se abrigaram toda a vida debaixo de saiotes e fraldas compridas. Pedalem agora, se outra coisa não souberam fazer. Firmem-se agora, se fraquejaram antes.

Monsenhor, passando de bicicleta, faz caretas e retine a campainha. As saias esvoaçam, a populaça alvoroça, um cavalheiro muito lá da igreja segura o queixo de pasmo; as tipas da residência universitária gabam a torneadura dos membros inferiores do velho, pese a lixívia que os descolorou; um automobilista choca por trás porque olhou para o lado em vez de travar; o da viatura B, a abalroada, já se lhe dirige com a declaração amigável e um par de tabefes em preparação; as pombas, asas para que vos quero, mas não sem cagadela no Camões da Praça; os marroquinos dos couros e os indianos das rosas, ala, ainda não conhecem bem as fardas, não sabem que aqui as saias não tem autoridade sobre o comércio e que Cristo não voltou à terra a azucrinar os vendilhões; e a campainha ainda assusta um arrumador que tinha escapado ao programa.

Monsenhor, passando de bicicleta, berra como um doido quando dobra esquinas e cruza vermelhos. Não pára, claro, nas passadeiras, porque é português e estudou física e teologia, e da física sabe os poderes da aceleração, a problemática do atrito em caso de paragem brusca; da teologia só recorda a multiplicação dos peixes e as caminhadas sobre a água; com a nacionalidade está confortável. Um helicóptero fez a sua ascensão, por mandato do comando distrital da polícia, para acompanhar e antever o destino da desfilada eclesiástica. Há alguma estática na comunicação, interferências inusitadas, parece que estranhos fenómenos climáticos estão marcados para o dia de hoje, ou estará para se manifestar a birra celestial com o sprint de Monsenhor, as televisões ainda não o sabem bem, e em rodapé há testemunhos de Virgens que choram e pedófilos em segredo de justiça.

Monsenhor, passando de bicicleta, acha mal que tenham construído aquele prédio onde antes era estrada, dividindo-a; não sabe se consegue meter pela direita, como mandam as escrituras e a seta branca em fundo azul, e mete pela esquerda; não tem tempo para os códigos, da estrada ou da moral, e sobretudo, considerando a força centrífuga e o ângulo do corpo, o caminho ímpio é o único que o salva da queda.

Monsenhor, passando de bicicleta, deixou para trás a cintura industrial da cidade e os paramentos que se lhe enrolavam no pescoço. Saiu à pressa, está bom de ver, e, segundo o último directo feito pela equipa de reportagem no helicóptero da polícia, não diminuiu um metro por hora a mesma urgência que o leva de nariz colado no volante do biciclo, traseiro sentado no selim alto, excepto quando as subidas obrigam a outro jeito de pedalar. Monsenhor aceitaria, de bom grado, apostas sobre o seu destino, tivera ele tempo e humor. Mas vai resmungão. O suor, o esforço, o pulso acelerado, as pernas acima abaixo, não lhe tiraram tempo para praguejar. Vai praguejando Monsenhor, e no Vaticano não se pragueja, que Deus não quer, mas há ali umas autoridades muito zangadas com Monsenhor, sem saberem, em boa verdade vos digo, porquê.

Monsenhor, passando de bicicleta, olha para cima deitando chispas pelos olhos e aproveita uma recta para tirar as mãos do volante e fazer um manguito dos antigos aos céus, talvez apenas para o helicóptero que transporta a equipa televisiva e as imagens que esta prepara para o jornal da noite, quando um especialista em motricidade humana dirá impante onde parará o pedalar de Monsenhor e um perito militar do Instituto de Cartografia discordará, porque tem grande fezada em um de vários destinos prováveis para o bólide clerical.

Monsenhor, passando de bicicleta, vai muito, muito zangado, mas encosta o dínamo na roda dianteira e faz luz sobre o seu caminho, desassossegando a bicharada no campo.

2003

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