[Já agora, que diabos, fica aqui em nova versão o contito referido no post anterior.]
Mudara-se para as montanhas no
início da semana com o objectivo de passar o Verão. Não tinha exactamente um
projecto a que se entregar, nada mais do que uma mala cheia de livros e a
necessidade absoluta de não ver ninguém, ninguém conhecido, pelo menos.
Escolheu uma vila pequena sem outros
atractivos além de uma paisagem discreta e um festivalzinho de música clássica
num fim-de-semana de Agosto (reparar no festival fora uma cedência de que
esperava não se vir a arrepender). Alugou por oito semanas o bungalow com uma lareira e um
alpendre virado para um vale profundo. Ficava nos arredores da povoação e fora
o único a ser erigido de um complexo turístico falhado.
A cabana não estava nas melhores
condições, era frágil, em madeira, mas tinha conforto suficiente, mais do que muitas casas
nas redondezas. Usaria o alpendre tanto quanto possível. Quando não estivesse ali
sentada a ler os seus livros andaria a tentar perder-se pelos montes ou teria
ido fazer as refeições à vila, guardando-se de fazer amizades. Por uma vez na
vida, estava-se nas tintas para a educação ou para a cordialidade. Seria a
velha antipática e egoísta que tinha o direito de ser.
Bem, talvez não tivesse esse
direito. Não tinha sido exactamente o melhor dos seres humanos. Mas, que diabo,
quem poderia atirar a primeira pedra? Não havia seres humanos bons e ela queria
mesmo que se fodessem todos (estava velha e com um diagnóstico de senilidade
galopante, podia, finalmente, usar o verbo foder).
No terceiro dia começou a nevar.
Estava a tarde a meio e ela apenas se deu ao trabalho de achar ridículo nevar
em pleno Verão, com aquele calor. De todo o modo, era-lhe indiferente. A
lareira estava funcional, caso a temperatura baixasse, e havia lenha nas
traseiras do bungalow. Além do mais,
teria a sua desculpa: escusava de se censurar por ficar em casa em vez de ir caminhar
pelas redondezas. Gostava do exercício físico — tivera sempre o culto do corpo,
do movimento, fora bailarina —, mas agora já não via o mesmo interesse nisso.
O crepúsculo foi belo, teve de
admitir. Duas forças em oposição: a noite que caía e a neve que teimava em
manter os campos e os montes iluminados. Assistiu ao combate de rosto colado na
janela e livro esquecido nas mãos. A noite ganhou, naturalmente, mas não foi
uma vitória completa: não havia trevas, apenas uma penumbra que permitia ver
muito mais do que os contornos das coisas. Ao redor da cabana estava até bem
claro, como uma noite de filme. O branco da neve reflectia a luz eléctrica e a
luz das estrelas, transformando a envolvência num décor de estúdio.
Então eles chegaram. Não se
moviam como pessoas normais. Vinham acometidos de convulsões, como que afectados por danos
neurológicos, tropeçando, caindo e levantando-se quais robots inadaptados ao terreno. Na aparência eram humanos, mas
diferenciavam-se pelos movimentos, pela postura estranha do corpo, pela maneira
impossível como mexiam e dispunham os membros.
Marionetas animadas, deu consigo
a pensar. Alguns pareciam querer aproveitar a neve para deslizar. Outros
simplesmente tombavam a cada dois passos, com violência. Levantavam-se de
imediato, dir-se-ia que impulsionados por molas, para voltarem a cair no passo seguinte.
Depois já nem tinham o trabalho de se levantarem, simplesmente saltavam no chão
com o corpo na horizontal, em estertores de gatos atropelados, acrobáticos, conseguindo
progredir no terreno desta forma.
Não era absurdo ver uma intenção
coreográfica naquilo tudo. Pelo menos ela achava que era esse o espírito que
animava os visitantes. Talvez porque não estava disposta a ceder ao pânico
fácil e estereotipado de se imaginar na presença de uma dúzia de mortos-vivos.
No momento seguinte eles
levantaram-se e juntaram-se em círculo, com os braços nos ombros uns dos
outros, como uma equipa de râguebi disforme. Segredavam e parecia ouvir-se uma
música alusiva à conspiração (de certeza o vento, que entretanto chegara). Fechou
o livro e apagou a luz. Apetecia-lhe desfrutar aquilo intensamente — e ao mesmo
tempo sentiu que era esse o gesto que se esperava dela, como se tudo naquela
noite obedecesse a um guião.
E agora parecia que uma bomba
rebentara no meio do conciliábulo lá fora: cada corpo foi projectado para um
lado e os primeiros a conseguirem levantar-se tiveram uma reacção estranha:
correram a atirar-se repetidamente contra a cabana.
Achou que devia abrir a
porta — aquelas pessoas procuravam desesperadamente abrigo, por certo —, mas
alguma coisa a fez permanecer à janela, a espreitar. Talvez eles desejassem, na
verdade, derrubar-lhe a casa, fazê-la cair sobre a inquilina, sepultando-a
viva. Era uma ideia terrível. Contudo, estava a ter prazer em observar a
violência com que os visitantes se atiravam contra a casa, a forma coordenada,
bela e perturbante como o faziam. Eram impactos de uma bizarria que assentava
na violência e na invulnerabilidade de que pareciam beneficiar os atacantes.
Daquele assalto não resultavam danos físicos para eles. Era possível sentir a
força a que era submetida a estrutura de madeira da cabana a cada investida,
mas não havia lesões ou queixumes.
O ataque obedecia a um padrão que
ela esteve quase a decifrar, só que acabou por perder o fio ao raciocínio.
Acontecia-lhe com crescente frequência. Estava velha, talvez com Alzheimer, não
havia nada a fazer.
Um dos visitantes começou a
mexer-se freneticamente, possuído por um demónio ou tomado por um feroz ataque
epiléptico. Pareceram-lhe familiares, a pessoa e os movimentos. Era um homem
jovem, de etnia oriental, e fazia coisas assombrosas com o corpo. Tinha a
capacidade de o metamorfosear, dava-lhe novas formas e dimensões. Esticava-se e
parecia uma pessoa alta, de longos membros, ou encolhia-se até ao chão e não
era mais do que um pequeno monte de roupa enrugada sem nada dentro. Erguia-se
de novo como uma pessoa franzina, pouco mais do que um cadáver emagrecido, e no
momento seguinte ficava largo de ombros, os músculos recortados e imponentes. Dir-se-ia
um daqueles bailarinos acrobáticos de que em tempos gostara tanto.
De súbito, o oriental esmagou o
rosto contra a vidraça (sem a partir) e ela, com um susto, julgou reconhecer-lhe
a cara. Não lhe faltaria mais nada, pensou, tanto trabalho para conseguir um
Verão só para si e agora ter conhecidos a tentarem derrubar-lhe a cabana...
Seria patética, se não fosse trágica, a ameaça de companhia.
Estava a tentar concentrar-se nas
razões que levariam um grupo de desconhecidos (insistia em considerar que o eram)
a encetar um ataque daquele género quando todos lá fora se imobilizaram,
fixando um ponto qualquer para lá do círculo da luz branca artificial que rodeava o bungalow. Não falavam, mas o seu olhar
dizia tudo: o inominável, nada menos
do que isso. Ouviam-se passos pesados e uma música tensa.
Após alguns instantes fustigados
pelo vento, um velho, mais aturdido do que ameaçador, atravessou a neve pisada
do quintal. Passou em silêncio pelo grupo petrificado e veio postar-se de
joelhos à frente da janela,
no rosto uma expressão de súplica. Parecia-se de forma assombrosa com alguém
que ela conhecera intimamente, amorosamente. E se era quem parecia, esta era então
uma visita do além.
Aquele homem já não existia.
Tanto quanto ela conseguia raciocinar, não devia estar ali, não podia estar ali. Teve um suspiro de
enfado e deixou-se cair no sofá. Pior do que a visita de conhecidos era a
visita de conhecidos mortos.
Olhou à sua volta, incomodada com
a farsa. A cabana parecia parte de um cenário, as estrelas projectores num
palco.
Uma voz sussurrou-lhe no interior
da cabeça, como um ponto a segredar-lhe as deixas, e ela sobressaltou-se. A voz
dizia-lhe: «Maria, agora sais da cabana e abraça-lo.»
Que demónios significava isto?
Que epifania absurda era esta? Quem lhe falava? Que divindade não invocada lhe
dava ordens? Tentou abafar aqueles murmúrios tapando os ouvidos com as mãos e
nesse momento percebeu que tinha um auricular enfiado numa das orelhas.
[Inspirado em "32 Rue
Vandenbranden", de Peeping Tom]
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