Durante uma boa parte da minha vida adulta escrevi textos críticos e
satíricos de pendor social ou político. Antes tinha feito cartoon (é verdade), primeiro como argumentista, depois, por desistência
do parceiro, também como desenhador. Não eram grande coisa, os meus cartoons, tanto no traço como no humor.
Embora aquilo me desse bastante gozo, não sei se haverá algum por que possa
sentir qualquer ponta de orgulho. Guardo parte deles na garagem, mas há mais de
uma dúzia de anos que não lhes toco. Quando o fizer, provavelmente o papel de
jornal desfaz-se-me nas mãos e não me parece triste nem injusto que isso
aconteça. Inicialmente assinava-os com pseudónimo, mais por timidez e insegurança
(ou por consciência não assumida da sua mediocridade) do que por receio de
represálias. Mas em algum momento devo ter percebido (finalmente) que,
medíocres ou não, era cobardia não assinar os desenhecos e passei a fazê-lo. O
mundo, acertadamente, não se comoveu com o gesto, a Terra não alterou a sua
órbita.
Quando passei para as colunas de opinião, em publicações próprias ou alheias, a ironia e a irrisão acentuaram-se. Ganhei os meus primeiros
inimigos para a vida, mas quase todos inimigos cordiais e até afáveis, devo
dizê-lo.
Por ocasião do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, se não
estou em erro, escrevi para o extinto Semanário
Transmontano, onde era na altura cronista regular, um texto a ridicularizar
sarcasticamente o evento e as suas pretensões e o director resolveu publicá-lo em
letra gorda na primeira página. O jornal foi distribuído no Congresso e eu
resolvi aparecer no local, com suposta heroicidade, para dar a cara pelas
minhas palavras (ou talvez deva dizer honestamente, para recolher os louros pela boutade). De novo com justiça, a nata
transmontana ali reunida não deu pela minha presença: não houve vaias,
assobios, ameaças à integridade do escriba petulante e traidor. Só o meu
ego saiu ferido.
De resto, tirando ocasionais reacções frouxas, a minha intervenção
cívica através da crítica e da sátira pareceu-se demasiado a um passeio bucólico
pelos bosques. Só a espaços senti ter despertado algum ódio atávico, geralmente
vertido em colunitas azedas, algumas convenientemente anónimas, e apenas em
duas ocasiões as reacções ao que escrevi traziam implícitas ameaças de consequências.
Numa noite de vitória eleitoral de uma facção que eu satirizara nas minhas crónicas,
um militante mais eufórico ofereceu-me o seu olhar de pura raiva hooligan e perdigotou palavras de exemplares democraticidade e fair play (confirmando,
aliás, involuntariamente, o que eu escrevera sobre a seita, mas isso ele jamais
poderia perceber). Pela mesma época, certo figurão resolveu informar uma
audiência (não apenas privada, infelizmente para a sua honra) que os meus
escritos eram razões suficientes para ele mexer cordelinhos e conduzir-me ao desemprego.
Deve ter-se sobrestimado ou arrependido, porque continuei empregado.
É por este triste currículo que me sinto obrigado a confessar ter
sentido uma certa vergonha a acompanhar a minha comoção com a morte dos
cartoonistas e jornalistas do Charlie
Hebdo. A afirmação Je Suis Charlie
que pus como foto de perfil no Facebook é sincera na sua solidariedade, mas é
simultaneamente cabotina, equívoca. Não, não sou Charlie. Eu não tenho a bravura, a grandeza daqueles homens. Eu não
escrevo textos nem faço desenhos corajosos como os daquelas pessoas que
morreram em Paris. Eu não vivo a um passo da ameaça terrorista. As minhas actividades
e as minhas opiniões não me expõem a perigos quotidianos potencialmente fatais.
Poderia passar os dias, aqui neste canto da periferia europeia, a republicar cartoons sobre cretinos e fanáticos muçulmanos,
católicos, judeus, hindus e nacionalistas e provavelmente morrer de velhice, cirrose ou de um
AVC — não com balas ou bombas.
Mas sobretudo não sou Charlie porque com os anos tenho demasiadas vezes
cedido à inércia e à preguiça e deixado de me rir — rir ironicamente, sarcasticamente, ferozmente, acintosamente, publicamente — das pequenas iniquidades
e dos pequenos ayatollahs que neste
país também frutificam. A minha resolução de ano novo deveria ser a de voltar a
rir às gargalhadas com certa regularidade. Enquanto isso não acontecer, vou ali
trocar a foto do Facebook por uma igualmente solidária mas menos pretensiosa.
Grande texto, parabéns, sinto exactamente o mesmo
ResponderEliminarLi dezenas de textos sobre este assunto (não por vontade mas porque é quase impossível não o fazer) e este é o primeiro que não instrumentaliza as vítimas, que não trata este assunto com histerismo. Que acrescenta alguma coisa. O que não é proeza de pouca monta, de mais a mais tratando-se de algo escrito em cima do acontecimento. Obrigado.
ResponderEliminarExcelente texto!
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