Vidago é a minha Sintra. Eu sei que para um tipo nado nas Pedras
Salgadas isto constitui uma traição, mas não vou iludir ninguém.
No parque das Pedras — que continuo a amar como o meu quintal — habitam
as primeiras duas décadas da minha vida. Continuam a habitar. Habitam talvez
mais confinadamente do que quando as vivi: creio que, apesar de tudo, conseguia
sair com mais frequência dos limites termais quando tinha de facto 16 ou 17
anos. Agora não. Agora raramente tenho vida adolescente fora dali. Na minha
memória (que a partir dos quarenta passou a ser uma parte não negligenciável e
vívida do meu quotidiano) a vida púbere resume-se ao que acontece(u)
intramuros.
Mas se falei em confinamento foi por facilitismo semântico, na verdade
o parque das décadas de 70 e 80, o meu parque, era incomensurável. Ainda hoje
quando o revisito — o adulto em mim a reavaliá-lo como agrimensor perplexo ou incrédulo
— me convenço que os cálculos topográficos e as leis da física se não aplicam
ali, a não ser que consideremos a quarta dimensão e seguintes. O parque das
Pedras era a minha vila de M. Night Shyamalan, mas o mistério estava todo do
lado de dentro.
E contudo hoje é para Vidago que me desvio quando posso; para o parque
de Vidago. (Mesmo que não raro para ali me desvie sem sair das Pedras.) Há a
minha costela aristocrática, já aqui referida, e que em Vidago, reconheçamo-lo,
tem mais onde se inspirar. Mas não é uma costela de aristocrata cortesão, dado
à prática e à intriga palacianas. É mais um espírito de rei consorte, uma reincarnação
de D. Fernando II de Portugal. Retiro-me para Vidago como D. Fernando para a
Pena, para me subtrair ao mundo com a minha arte. No caso, para ler uns livros
e observar a humanidade ao virar da página e a uma distância segura. Mais
precisamente, à distância do banquinho instalado nas alturas do tee do buraco 17, já bem avançado na
encosta do monte. Refiro-me ao tee
dos 525 metros, a maior distância do buraco, onde raros se dão ao trabalho de
subir para a first shot, talvez por em
Vidago apenas aparecerem jogadores de handicap
alto e sempre é melhor subir menos e tacar 50 metros mais próximo do green. Aquele banco de granito consegue
nos finais de tarde de Primavera e Verão parecer-se a um terraço em Sintra, e a
discreta plaquinha votiva afixada nas suas costas, em memória de Robert Keith
Cameron (presumo que da firma Cameron & Powel, responsável pelo novo
desenho do golfe), concede ao sítio uma dignidade de local sagrado. Cameron
deve ter olhado para a sua obra dali de cima, como Deus ao sétimo dia, e
mandado pôr ali um banco para apreciar a imensa beleza do que fez (sem,
felizmente, estragar o não menos belo trabalho da Natureza). Por isso, ali só
deviam subir, circunspectos e silenciosos, jogadores de handicap zero (e espero que todos prefiram jogar de manhã, nunca ao
final da tarde) ou verdadeiros apreciadores da paisagem e de retiros bucólicos.
Ou seja, eu — e, vá lá, o fantasma de D. Fernando.
P.S.: À consideração dos vigilantes do parque: deixem em paz o gajo
dominical dos livros, caso algum dia vos incomode a peregrinação, e persigam os
que lhe sucedam. Esses serão os profanadores.
Este seu texto levou-me a este outro (http://canhoes.blogspot.pt/2013/08/esperar-o-fim-no-palace-hotel-de-vidago.html), como julgo ter sido sua intenção. E dele ainda fui revisitar o Solar Bragançano, como o Palace do Vidago uma gratíssima memória. E, sim, a ter que os ouvir e antever, na distância, antes do fim que acabarão por impor, que os bárbaros sejam esperados nesses sítios.
ResponderEliminarAté ao final do ano passado, António Sousa Homem depunha na internet textos. Aqui: http://antoniosousahomem.blogs.sapo.pt/ , depois de o ter feito noutro blogue e, claro, de o ter feito em livro.
Não sei se ainda mantém presença regular na imprensa. Escreveu mais recentemente no Correio da Manhã. Que me perdoe o Dr. A. Sousa Homem, nem a sua sereníssima elegância nem o seu tão lúcido pessimismo antropológico me levariam a comprar aquilo.
Costa