«Há um profeta no Seixo, disse Eurico,
levantando-se para encarar os campos que os separavam da aldeia. Ninguém que
seja de levar muito a sério, apenas um tipo louco que escolheu uma vida
original. Habita uma cabana tosca lá em baixo, depois da curva do rio, comendo
o peixe que pesca e as ofertas piedosas da aldeia, onde sobe uma vez por
semana. De vez em quando vai pelas terras em volta, de porta em porta, como os
apóstolos, de Bíblia na mão. Tem uns longos cabelos negros, barba, é magro mas
musculado e veste sempre pouca roupa, mesmo no Inverno. Os mais supersticiosos
não deixam de se benzer quando ele aparece. Se não o conhecessem jurariam que
se tratava de Jesus Cristo, Ele próprio, e alguns ainda esperam, sem o
confessarem, que um dia algo de maravilhoso se revele nele. As mulheres
suspiram, e entre elas falam do desperdício que é um homem daqueles, bonito
como o Errol Flynn, ter-se perdido assim.
Houve alturas em que esteve para ser
morto, abatido a tiro como um javali, ou à sacholada como uma víbora. Nestas
terreolas os homens saem cedo, para a lavoura, e só as mulheres ficam em casa.
À hora a que o Silvano (é este o nome dele) chega para a sua pregação só as
encontra a elas. Ele fala baixinho, com afabilidade e extrema educação
(estudou) e é de facto uma pessoa com bom coração, cheia de amor pelo próximo,
como manda a Bíblia. Seduz, para dizer tudo numa palavra. Se fosse um
caixeiro-viajante ninguém duvidava que os seus modos não passavam de uma
táctica para vender as bugigangas que trazia na mala e sabe-se lá para que
mais. Mas ele só fala de religião, de praticar o bem, de confessar e perdoar os
pecados e coisas assim. Seja como for, por essas ou outras razões, é bem
recebido, as mulheres gostam de o ouvir e perdem um bom tempo com ele, a
suspirar, enlevadas num bem-estar místico, a darem-lhe as mãos a beijar, por
vezes. E isto nem sempre agrada aos maridos, aos mais ciumentos, que vêem
naquela catequese, reprovada pelo padre, uma maneira de serem desprezados pelas
mulheres, e às vezes pior do que isso. O que lhe vale, ao Silvano, é não fugir,
dar sempre a outra face. Se se acobardasse um bocadinho quando eles chegam com
as fúrias e desatasse a correr pelos campos a segurar os seus andrajos, já
teria, talvez, levado com chumbo nas costas. Assim, exaspera os homens — que
lhe invejam a figura e a bravura —, mas ao mesmo tempo intimida-os, com o seu
olhar bondoso de santo no altar. Duma forma ou de outra, sobreviveu até hoje.»
in Hotel do Norte
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