quinta-feira, 26 de março de 2020

Ioga para seniores ou do terço à saudação ao sol

Nesta quarentena ainda não corri uma maratona na varanda, como fez Elisha Nochomovitz, mas, porque nas saídas profissionais vou geralmente fechado no carro como num escafandro e, cidadão exemplar, evitei até agora correr no parque com receio de incentivar outros, tenho vindo a submeter-me todos os dias a vinte minutos de ioga para tot…, perdão, para seniores, instado por quem comigo partilha a cela.
Não vou cometer publicamente a desfaçatez de dizer que não aprecio a modalidade (sobretudo porque já o fiz em privado) e na verdade, depois da tortura inicial, a sessão tem vindo a ser suportável, mesmo proveitosa, e abriu-me a mente para outras práticas e horizontes que até há pouco não imaginava possíveis (comecei também, por exemplo, a preparar-me para a Volta à França numa bicicleta estática). No entanto, a súbita constatação, ao acordar todas as manhãs, de que depois das abluções me irei voluntariar sorrindo para a aula online da Miss Cole Chance ainda me deprime mais do que a ideia, também subitamente concretizada, de ser agora uma personagem distópica dum filme série Z.

A contrariedade (já um pouco escusada) que se instala no meu corpo e no meu espírito recém-levantados da cama é semelhante à que me oprimia nos jantares de Maio da década de setenta, quando antecipava os quinze minutos de tortura que me eram servidos como sobremesa durante todo o tempo que durava o «mês de Maria». Consta que a Nossa Senhora, quando apareceu na trip bucólica e famélica dos três pastorinhos, penteando o cabelo e colorida como um arco-íris jaggeriano, lhes pediu «insistentemente» que rezassem o terço todos os dias. O povo português, que tem uma tara por tradições instantâneas, logo instituiu que dali em diante em Maio, mês da primeira aparição, se rezaria diariamente o terço em todas as casas católicas. Nos anos setenta a minha ainda era uma casa católica e eu uma criança a quem o 25 de Abril não trouxera a liberdade prometida. Sentava-me com os meus irmãos e irmãs numa roda ao lado da mesa da cozinha, a ver os dedos da minha mãe, que liderava a sessão, devorarem com uma lentidão desesperante as contas do terço (como um Pacman sádico ou instalado numa máquina com um processador fraquito), ganhando um pouquinho de ânimo de cada vez que ela chegava àquelas contas maiores que, como metas volantes, marcavam etapas no mantra interminável das Avé-Marias e introduziam, como falsas pausas, a variante nada refrescante do Glória-a-Deus seguido do Pai-Nosso, ansiando então pela terceira meta volante, que nos permitia iniciar com olhos silenciosos (os lábios sempre em ladainha) a contagem decrescente para a meta final, representada pela cruz como num Calvário e na verdade adiada por umas Salve-Rainhas e uns Credos também eles repetidos interminavelmente e ainda intercalados por mais três Avé-Marias (não eram consideradas suficientes as cinquenta anteriores) e — por que não? — um Pai-Nosso, até que, finalmente, com as seis crianças quase desfalecidas e a implorarem progressistas por uma lei da eutanásia infantil, mais pálidas do que as da família Adams, finalmente, dizia eu, a minha mãe enrolava o terço numa das mãos e com um sorriso talvez beatífico dava por concluída a sessão.
Não demorávamos a amar de novo a minha mãe (as crianças esquecem rápido), mas não me recordo de as agruras do terço me terem aberto o espírito como as do ioga me abrem o peito na «saudação ao Sol» que, de estores abertos, ofereço gratuitamente como artista-em-casa aos vizinhos do prédio fronteiro.

2 comentários:

  1. delicioso!
    (também não escapei ao mês de maio e ao terço obrigatório... :-) )

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  2. Obrigado.
    Foi o flagelo de uma geração. :)

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