«Numa das digressões pelo Youtube fui parar à canção “Barco Negro”, na versão de Amália Rodrigues. Ao terceiro verso já chorava. A interpretação de Amália era perfeita, comovente, de uma beleza que tocava os sentimentos de quem a ouvia, mas o que actuava em mim, na minha sensibilidade, não eram só as suas qualidades artísticas, a estética sublime da sua voz: era a incrível semelhança com a voz da minha mãe. A forma como as notas subiam e pareciam precipitar-se para aquele brado de alma na palavra “olhos” era a da minha mãe. Nesse verso, na totalidade dele, nesse pedaço de transcendente oferecido aos mortais, que os deuses tinham encarregado algumas pitonisas de passear pelo mundo, estava um pouco da própria face de Deus, um centímetro cúbico (não sei como se exprimem as medidas de lugares com quatro ou mais dimensões) do paraíso infinito. Não eram as palavras que importavam — por mais que devêssemos admirar o poema de David Mourão-Ferreira ou o de Antônio Amábile que no Brasil o antecedeu —, o que importava não eram os sentimentos ou as emoções que as palavras transmitiam embaladas pela música, não era o lamento verbal, a catarse pela tragédia que as histórias propunham: era a própria música, os sons, as notas, a sequência delas, a percepção da fórmula divina que eles próprias representavam, cuja estrutura cósmica elas quase tocavam, por instantes adivinhavam.
«Matheus Nunes (Caco Velho, o compositor) teve essa visão, é dele o mérito, ou foi a ele que Deus confiou uma linha breve do seu próprio código genético. Mas só quando o brasileiro transmitiu a Amália a “ideia”, para evocar Platão, é que ela ganhou a sua expressão verdadeira, se revelou. Talvez o justo fosse que Amália interpretasse a letra original, lamentasse o sofrimento da Mãe Preta em vez de o da viúva do pescador, mas, que a mesma estrutura melódica, a mesma insinuação metafísica possa abraçar várias formas de dor é admirável e provavelmente significativo.
«É portanto para a minha mãe que a canção, a voz de Amália remetem, talvez porque a minha mãe é agora parte da deidade, incorporou-se a ela há uns anos. Quando Amália a gravou parecia apenas mais um momento na sua carreira, um dos brilhantes, mas era na verdade um passo num guião que alguém escrevera preventivamente para ela com outra finalidade. Prevendo-se que a minha mãe não seria gravada, que a sua voz, exprimindo-se num local e num tempo onde nem a mitologia, pagã ou católica, fazia descer deuses à Terra que se apaixonassem pela pastora que era a minha mãe e lhe dessem um sopro de celebridade, prevendo-se por isso que não integraria as listas da rádio, não andaria em digressão e não se registaria em discos ou cassetes, haveria o Universo de a imortalizar por outra via e essa via foi Amália.
«Foi para que eu chorasse ao terceiro verso e pudesse assim sentir da minha mãe mais do que a memória dela, para que pudesse ter a minha epifania além da retórica literária, que Amália recebeu de Matheus a canção e entrou num estúdio para a gravar. Sim, foi com Amália que a minha mãe aprendeu a canção, era a Amália que as pessoas a comparavam quando ela cantava no dia-a-dia anónimo da sua existência, mas isso é apenas porque houve uma dobra no espaço-tempo, uma singularidade, um ouroboros; Deus perverteu a sequência cronológica dos anos em homenagem à minha mãe, é ela a Mãe Preta que chora todas as injustiças do mundo e eu sou a mulher do pescador que diz, que sente
Eu sei meu amor
Que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor
Me diz que estás sempre comigo.»
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