Na corrida de ontem o meu dilema foi maior e tive de pensar rápido. À minha frente na vereda por onde seguia, o chão estava pejado de formigas, tantas e numa distribuição tão densa que não havia para onde desviar o pé. Elas tinham os meios para evitar o desastre (eram formigas com asas), mas por alguma razão não estavam a socorrer-se deles. A inércia da corrida e a inércia de cinco décadas encaminhavam-me para uma carnificina, e nos segundos de que dispunha antes de passar pela concentração formigueira como duriense em lagar pensei nas hipóteses que havia. Saltitar pé ante pé nos espaços em branco não era possível, os bichinhos espalhavam-se no saibro como nós de rede de pesca ilegal. Passar por ali em pontas de ballet também não funcionaria, nem que a anatomia desta vez resolvesse colaborar: a rede era mesmo apertada. Ainda que fosse ultra-rápido a descalçar as sapatilhas, como o Neo na Matrix a desviar-se das balas, estava-me vedado, por razões de natureza pessoal, invocar dotes culturistas e saltitar apenas nas pontas dos dedões dos pés, como certos atletas fazem flexões. A única solução, concluí, pensando dentro do mesmo campo semântico onde tinha origem o meu dilema moral, era levitar. Na ponta extrema do último segundo antes de me tornar a chuva de meteoritos daquele mundo de formigas, meditei empenhadamente e, como por milagre, levitei durante umas fracções do segundo seguinte por cima dos primeiros espécimes, a olhar para baixo com alívio e assombro e uma sensação épica cinematográfica. Depois acabou a fita ou algo perturbou o meu estado zen e os pés voltaram a cair um após o outro na cadência regular da corrida, quebrando exoesqueleto atrás de exosqueleto.
Ter-se-iam poupado mais vidas se tivesse tentado o triplo salto.
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