Ver os abutres e os grifos no Salto del Gitano é um espectáculo fascinante mas não surpreendente, porque esperado; visitamos o sítio com esse objectivo. Um grupo de cegonhas apanhado pela visão periférica a planar à distância de um salto de trampolim no céu da minha varanda, porque raro, é disruptivo. Por uma fracção de segundo o mundo habitual é perturbado sem que fique claro se o é por uma ameaça se por um fenómeno benigno, um milagre ou uma revelação. Gosto desse sentimento que dura um tempo demasiado curto mas autoriza a hipótese de transcendência. Um sentimento que, permitindo uma fugaz intuição de possibilidades inimaginadas ou intimamente desejadas, insinua que a vida neste planeta é uma espera, uma espera por vida alienígena, um anjo anunciador ou o mistério da morte.
Ao contrário de outras regiões do país, nos locais onde vivi os meus primeiros vinte e poucos anos não havia cegonhas e quando elas começaram a aparecer foram recebidas, não apenas por mim — com absoluta propriedade, no sentido literal e metafórico —, como avis rara. Um dia segui de carro o voo de um espécime solitário enquanto as estradas e os caminhos permitiram circular e depois continuei a pé, até o perder de vista. Era dessa dimensão o meu assombro. Tenho da mesma altura uma memória que não sei se é de um incidente se de um sonho: presenças espectrais pressentidas ou vislumbradas — ouvidas, também —, grandes asas e longas pernas espreguiçando-se de madrugada na outra margem de uma pequena albufeira, a poucas dezenas de metros. Na altura pensei em cegonhas, se fosse hoje imaginaria grous. Havia whisky à mistura, pelo que pode ter sido apenas uma alucinação, no local ou no leito que lhe sucedeu. Não me importa, ficou-me essa experiência como uma possibilidade e isso é mais reconfortante ou inspirador do que milhares de experiências comprovadas que lhe sucederam.
Vivem biliões de seres humanos no mundo, mas raramente a visão central ou periférica capta um que provoque impressões similares, não apenas em mim. Partindo, abusivamente ou não, da minha experiência, concluo que há talvez desde sempre uma misantropia endémica no mundo, caso contrário não haveria tanta gente entusiasmada com a possibilidade de vida inteligente noutros planetas ou a de uma vida depois desta. Ou com a entrada de aves raras no território ordinário.
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