terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os nomes e as coisas

Uma das funções essenciais de um aprendiz na oficina de mecânico era obedecer estremecendo à ordem «cheg’aí os esperdícios». Os esperdícios eram um utensílio indispensável na oficina, mesmo quando, devido à quantidade de óleo absorvido, já sujavam mais do que limpavam. Mecânico que se prezasse tinha a espreitar do bolso de trás do fat’macaco azul as melenas coloridas e encaracoladas de um molho de esperdícios, mas alcançar aquela parte do corpo era mais trabalhoso do que berrar ao aprendiz por esperdícios.

O termo esperdícios — ligeira corruptela de «desperdícios», um aprendiz viria a saber muito depois —, embora designasse a coisa, não a descrevia. Era então apenas um nome, como martelo ou parafuso. Um aprendiz não se punha a pensar na palavra ao ponto de descobrir a corruptela e muito menos de perceber que o nome descrevia a composição do molhinho de fios coloridos. Do mesmo modo que nunca pensava na palavra «boca» quando tinha de chegar ao mestre a chave-de-bocas ou na palavra «fenda» quando o cirurgião, debruçado de unhas encardidas sobre a cambota padecente, pedia a chave-de-fendas. As palavras eram para um estremunhado aprendiz abstractas, não continham em si a denúncia da função, da composição ou do modo de emprego. Eram meros nomes.

Sobre a primeira das duas palavras-chaves atrás referidas um aprendiz poderia ter, contudo (mas não tinha), uma epifania quando, glutão, jogava Pac-Man depois da jorna; quanto à segunda, fosse um pouco mais sofisticado o léxico das frequentes aulas de anatomia feminil na oficina e a luz talvez se derramasse, ainda que vagamente, sobre um aprendiz.

Um artista quando muito jovem era também não raro aprendiz de electricista e nessa função chegava regularmente ao mestre o «moscapolos» — muito antes de perceber porque é que aquela chave-de-fendas tinha direito a um nome próprio e o que havia de bizarro nesse nome de ressonâncias gregas.

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