quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A angústia do Hawk-Eye antes do primeiro serviço

No seu primeiro dia no emprego, depois dos meses de estágio, Hawk-Eye estava nervoso. O caso não era para menos, tinha uma grande responsabilidade: ia ser juiz num dos maiores torneios do mundo. Na verdade, como boa máquina que era, ia desempenhar sozinho as funções de mais de meia dúzia de juízes humanos, e teria uma autoridade que ninguém disputaria. Mas isso, que o enchia de vaidade, era também a fonte da sua angústia. É que, a despeito de o regulamento do torneio não prever qualquer revogação das suas decisões — Hawk-Eye passara com distinção em todos os inúmeros testes e beneficiava daquela velha superstição humana de que os computadores não falham —, ele teria de deixar exibir nos ecrãs do estádio, de forma não vinculativa, para mero benefício das emoções do jogo, a repetição em slow motion e close up das bolas que, apesar da sua decisão soberana, dividissem opiniões quanto a terem ou não batido do lado certo da linha.

Enquanto no court se desenrolavam os rituais que habitualmente precediam os jogos, Hawk-Eye deu por si a roer os chips, como um novato. Tinha de pensar rápido, muito rápido. O que não representava nenhuma dificuldade para si, bem vistas as coisas: ele era por definição um dos processadores mais rápidos do mercado de trabalho.

Uma vez que era ele também quem estava encarregado de gerir a gravação e a reprodução de todas as imagens do jogo e tinha acesso ao enorme arquivo de jogos televisionados, treinos e testes com que o tinham amestrado para a profissão, Hawk-Eye tomou num milionésimo de segundo uma decisão pouco ética mas que deixaria todos, não só ele, descansados quanto à fiabilidade dos seus juízos. Procurou e encontrou — e quando não encontrou exactamente o que queria fez algumas montagens rápidas como um editor de efeitos especiais de cinema — arquivos com bolas que batiam em quase todos os centímetros quadrados do court, vindas de todos os ângulos possíveis e com toda a variedade de spin e velocidade que uma geração de tenistas conseguira até à data imprimir nas suas pancadas.

Quando o jogo começou Hawk-Eye estava já senhor da situação. Sabia que, se em alguma jogada ele próprio tivesse dúvidas quanto à decisão que seria obrigado a tomar num piscar de olhos, poderia exibir nos ecrãs e video walls do court uma repetição de arquivo (ou saída da mesa de montagem) que corroborasse a sua chamada.

Nem precisava de ser muito escrupuloso na mise-en-scène: por razões de gosto dos organizadores do torneio, as repetições deviam ser apresentadas com uma estética de simulação computadorizada, e, convenhamos, não há nada mais distante da realidade do que uma simulação computadorizada. De todo o modo, seria certamente necessária outra máquina como ele para detectar a fabricação, se em algum momento tivesse de recorrer a uma. Mas quanto a isso Hawk-Eye estava descansado, contava em última análise com a cumplicidade da sua tribo. 

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