«Suponho que em algum momento da minha vida deveria ter acontecido
uma evolução do meu interesse da BD para a literatura. Não necessariamente uma
evolução que rejeitasse as anteriores etapas; um progresso com alargamento de
horizontes, acumulação de interesses e curiosidades. Estava claro para mim que
a ficção iria ser sempre um suporte de que não me separaria, como se na
infância me tivesse sido diagnosticada uma deficiência num dos membros
inferiores e aquela fosse a bengala adequada para me deslocar. Mas, com o
crescimento, esperar-se-ia que reivindicasse uma bengala maior, proporcional à
altura que entretanto adquirira. Não o fiz, porém, e talvez me devesse
perguntar se a isso se atribui a forma desequilibrada como avancei na vida.
Não me fiquei pelas revistas juvenis, embora nunca as abandonasse;
ganhei também interesse por álbuns de maior erudição e exigência, com um humor
adulto e subtil, desenhos sofisticados, artisticamente relevantes, histórias
mais complexas e personagens mais densas, com narrativas de maior profundidade
dramática. Ganhei interesse, em suma, por muito do que a literatura representa,
mas a leitura de romances foi prática a que me dediquei com pouca frequência e,
quando ocorria pegar num livro, na maior parte das vezes preferia a ficção
científica. Um sintoma, terei de dizer, de que mais do que a ficção me
interessava a fantasia.
A capacidade de sonhar é tida como um dom, aquilo que nos permite
superar as limitações, encontrar alegria onde ela não existe. O sonho compensa
a vida. Pelo que se podia inferir que um livro — um livro de BD, no meu caso —
seria uma extensão do sonho, ou algo que substituía o sonho, se essa nossa
faculdade estivesse atrofiada. Mas talvez sonho
seja também, ou sobretudo, sinónimo de refúgio.
Ler revelar-se-ia, então, menos uma forma de sonhar do que de nos escondermos,
nos pormos a salvo da vida. A leitura não como entretenimento mas como
suspensão do tempo, da existência. Trazer uma revista de BD no bolso de trás
das calças era como, para utilizar imagens adequadas, transportar tecnologia
avançada, um aparelho onde poderia digitar a ordem de teleportação quando
estavam iminentes ocorrências ameaçadoras.
(…)
Era previsível que um espírito
tão prolongadamente ancorado na fantasia como o meu adquirisse vícios e
posteriormente não soubesse muito bem como viver sem a bengala da ficção.
Quando comecei a frequentar prostitutas fi-lo não tanto por incapacidade de
arranjar outro tipo de parceiras sexuais, mas porque apenas elas, algumas
delas, aceitavam, sem questionar, pôr a cabeleira ruiva que eu levava comigo.
Isso aconteceu numa altura em que eu já consumia regularmente drogas (outra
forma de viver em fantasia) e não era evidente para mim se o fazia para consumar
através de terceiras o meu flirt
gorado com Rita ou se porque não encontrava outra maneira de manter uma erecção
por um tempo razoável.»
Pedro, in Aranda
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