Hoje, quando nos sentamos livremente numa plateia, estaremos a precipitar-nos se sentirmos que isso vinga os nossos antepassados. O facto de ocasionalmente nos permitirmos e nos permitirem entrar numa sala de teatro para sermos inquietados ou perturbados é uma vingança provisória, efémera, sem grande alcance e certamente não garantida.
O país já não dispõe daquelas figuras de lápis
azul e mangas-de-alpaca laboriosamente encerradas em gabinetes do Secretariado Nacional
de Informação para determinarem ao que o país pode ou não pode assistir. Dispõe
de outras: sentadas nas direcções de programação das televisões (pública e privadas)
e sentadas na vereação de cultura de uma enorme quantidade de câmaras municipais
no país. Não usam o lápis azul porque hoje os amanuenses não escrevem com lápis,
nem têm um regime ou uma moral de estado para defender.
Mas têm a mesma ignorância despótica ou a mesma aversão à diversidade e ao livre arbítrio que tinha o Estado Novo. Cidadãos que pensem e
escolham livremente são um empecilho na luta pelas audiências e uma dificuldade
evitável para uma gestão autárquica que se quer simples como umas férias de Verão.
É verdade que, ao contrário das instituições do Estado Novo, as
televisões e as vereações não visam defender um regime nacional ou uma moral pública quando exercem a sua política de estrangulamento ou afunilamento do gosto — mas
está na sua natureza defender o statu quo,
e, se a moral ganhou em muitos campos uma considerável elasticidade, não foi em geral a
suficiente para suportar interesses divergentes.
Um e outro sistema, o das ondas hertzianas e o do feudo provincial,
precisam de uniformidade para exerceram a sua influência, as televisões para
venderem os seus sabonetes, certo poder autárquico para poder manter-se com os
mesmos fracos protagonistas e a mesma atávica incompetência.
Acresce que atávica é também a relação de muitos portugueses com a
diversidade e com as coisas que inquietam o espírito. Se não houvesse tiranetes
do gosto nas TVs e numa grande quantidade de câmaras, muito povo estaria ele próprio
disposto a sair à rua a gritar que «os portugueses quando vão ao teatro querem apenas
divertir-se».
Na verdade, fá-lo frequentemente, desdenhando ou considerando uma
veleidade insustentável haver concidadãos que queiram ir ao teatro por outras
razões.
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