terça-feira, 8 de novembro de 2011

Proselitismo

Aos domingos ao almoço a RTP1 apresenta um programa que se chama Cinco Sentidos. Nele, as vedetas do costume dizem as banalidades do costume.  O programa existe há pouco tempo mas não é novo. Veio substituir, sem alterar demasiado, um outro que se chamava Só Visto! e era apresentado pelas mesmas pessoas, tendo como convidados as mesmas vedetas, para dizerem geralmente as mesmas banalidades supostamente divertidas, às vezes montando um consultório emocional. A RTP sempre tendeu para o pechisbeque, mas desde os tempos do inefável Made in Portugal que se rendeu incondicionalmente à cultura pimba, nas suas versões de feira e de jet set. Na verdade, a RTP pôs-se diligentemente ao serviço da causa. Se esta é actualmente a “cultura” hegemónica na pátria muito se deve à acção da televisão pública.
Num país como o nosso, as televisões privadas dificilmente deixariam de deslizar para o género, mas a RTP preparou-lhes a rampa descendente.

Quando Carlos Pinto Coelho tinha no ar o seu Acontece (em horário nobre, veja-se de onde viemos), a intelectualidade de direita agoniava-se. A coisa era paternalista, condescendente, proselitista. Urgia afastar tal produto da TV. Os portugueses não podiam ser tratados como crianças que precisam de quem lhes ensine o caminho. Devia respeitar-se o discernimento dos cidadãos. Importava ser-se mais exigente nos critérios, menos voluntarista e menos inclusivo, mais selectivo. Nem tudo era digno de constar na grelha de um programa de cultura (que, aliás, nem tinha propriamente razão de existir).

Esta é a mesma intelectualidade que assistiu mais ou menos impávida ao proselitismo incansável da televisão (das televisões) em favor da mediocridade. Programas como o Cinco Sentidos — e o género domina as grelhas — não são inocentes. Alimentam-se da cultura dominante e alimentam a cultura dominante. Promovem o statu quo. Ignoram com ferocidade qualquer fenómeno que não se enquadre nos baixos parâmetros por que se regem, não se adeqúe à cultura do supérfluo, do previsível, do ligeirinho, que define o ridículo estrelato nacional.

Recusando (e até com certa razão) o proselitismo de produtos como o Acontece, esta inteligentsia fechou no entanto, alegremente, os olhos ao proselitismo pimba que entretanto ia agindo mansamente, um proselitismo que durante anos fez descer os padrões da opinião pública, estreitou os horizontes da comunidade, acabou com veleidades no que se refere a diversidade e exigência, atrofiou qualquer ponta de curiosidade que despontasse naturalmente nos telespectadores.

O fracasso do país foi também construído com estas ferramentas. A cultura de desleixo e de irresponsabilidade, o gosto pelo efémero e pela aparência, o oportunismo, o chico-espertismo, o baixo nível, a ideia de que o Estado é o Governo ou algo mais abstracto e que os impostos não são connosco, o abstencionismo e o absentismo, tudo o que nos define como sociedade estava inscrito no código genético daquilo a que se convencionou chamar pimba (no início, com um valor semântico pejorativo, mas esses tempos vão longe). E contudo o único proselitismo que foi deveras vituperado era certamente o mais inofensivo.