Num país como o nosso, as televisões privadas dificilmente deixariam de
deslizar para o género, mas a RTP preparou-lhes a rampa descendente.
Quando Carlos Pinto Coelho tinha no ar o seu Acontece (em horário nobre, veja-se de onde viemos), a intelectualidade
de direita agoniava-se. A coisa era paternalista, condescendente, proselitista.
Urgia afastar tal produto da TV. Os portugueses não podiam ser tratados como
crianças que precisam de quem lhes ensine o caminho. Devia respeitar-se o
discernimento dos cidadãos. Importava ser-se mais exigente nos critérios, menos
voluntarista e menos inclusivo, mais selectivo. Nem tudo era digno de constar na
grelha de um programa de cultura (que, aliás, nem tinha propriamente razão de existir).
Esta é a mesma intelectualidade que assistiu mais ou menos impávida ao proselitismo
incansável da televisão (das televisões) em favor da mediocridade. Programas
como o Cinco Sentidos — e o género
domina as grelhas — não são inocentes. Alimentam-se da cultura dominante e
alimentam a cultura dominante. Promovem o statu
quo. Ignoram com ferocidade qualquer fenómeno que não se enquadre nos baixos
parâmetros por que se regem, não se adeqúe à cultura do supérfluo, do previsível,
do ligeirinho, que define o ridículo estrelato nacional.
Recusando (e até com certa razão) o proselitismo de produtos como o Acontece, esta inteligentsia fechou no entanto, alegremente, os olhos ao proselitismo
pimba que entretanto ia agindo mansamente, um proselitismo que durante anos fez
descer os padrões da opinião pública, estreitou os horizontes da comunidade, acabou
com veleidades no que se refere a diversidade e exigência, atrofiou qualquer
ponta de curiosidade que despontasse naturalmente nos telespectadores.
O fracasso do país foi também construído com estas ferramentas. A
cultura de desleixo e de irresponsabilidade, o gosto pelo efémero e pela aparência,
o oportunismo, o chico-espertismo, o baixo nível, a ideia de que o Estado é o
Governo ou algo mais abstracto e que os impostos não são connosco, o
abstencionismo e o absentismo, tudo o que nos define como sociedade estava inscrito
no código genético daquilo a que se convencionou chamar pimba (no início, com
um valor semântico pejorativo, mas esses tempos vão longe). E contudo o único
proselitismo que foi deveras vituperado era certamente o mais inofensivo.