quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Os dois barítonos

São dois e a um tratam-no por senhor doutor, tem algures um cargo de reverência. Ambos para lá da meia-idade, barba (um) e bigode (o outro), corpos amplos, pesados, rostos desgastados pelos anos e pelos excessos. Solteiros, divorciados ou viúvos. Declaradamente livres. Marcam dia no restaurante e atacam com vigor pratos que encomendam com uma semana de distância. De sobremesa, hão-de querer aletria, «com muita canela». A canela é mencionada com recorrência, é essencial, terapêutica. A determinada altura, juntam-se-lhes as mulheres — amigas ou, desejavelmente, mais íntimas do que isso. É quando o entusiasmo com a comida é substituído (ou complementado) pela excitação juvenil. Eles mexem-se e saltam na cadeira, trocam piadas e pequenos safanões, têm piropos para as mulheres e conversas onde elas se sintam bem, com malícia ora doseada, ora trôpega. Ignoram o futebol na TV. Fazem beicinho, se elas reagem com indiferença a algum dito. Contam aventuras, feitos, com certa gabarolice púbere inconsciente. Planeiam o próximo jantar tentando garantir a presença delas, aceitando sugestões de pratos, antecipando a voracidade e a lascívia.
Vemo-los e os anos desapareceram-lhe do corpo, da expressão, dos olhos, que agora brilham. Adolescentes numa saída de sábado à noite. Apetite de rapazinhos em crescimento. A porem em prática uma corte quase inocente. Homenzinhos em aprendizagem do seu destino de adultos. Vemo-los — e tentamos não ouvir a voz de barítono, tonitruante, que ambos possuem e que atravessa a sala por sobre todas as conversas, todos os ruídos, forçando a partilha do que devia ser privado, desmentindo o quadro cândido, ferindo a ilusão, traindo a realidade, concedendo-lhe uma nota pesada de tristeza e engano. De decadência, se nos sentirmos nessa noite pouco generosos, amargos com a vida.