quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Bartleby ou o indivíduo e as suas estonterias

Muitas fotografias de escritores são feitas em frente às suas estantes. No seu caso, não tivesse falhado o destino por outras razões, havia uma decisão que o tinha livrado desse lugar-comum.
A última mudança de casa deixara para trás os livros acumulados. Como todas as mudanças, aquela era provisória, não havia urgência de empacotar a livralhada para a viagem. Além do mais, havia-lhe sido detectada uma certa tendência para deixar o lastro pelo caminho. Os livros ficavam, de qualquer modo, à guarda de um ente próximo, salvaguardava-se assim a possibilidade de um feliz reencontro (do indivíduo e dos livros).
Contudo, o contrato de arrendamento da morada anterior foi denunciado antes que houvesse progressos de carácter na nova morada. Havia que regressar e carregar as caixas, encher novas prateleiras. Ou talvez não. Poderia evitar-se o lugar-comum arranjando outro lugar para os livros. Em vez de recuperar a biblioteca e arriscar a possibilidade de um dia ser fotografado em frente a ela, o indivíduo podia doá-la. Afinal, sempre acreditara que a grande qualidade dos livros era poderem ser lidos por várias pessoas em vez de acumularem pó em estanterias burguesas.
A concretização do gesto expô-lo à possibilidade de passar por benemérito. Afastou o embaraço decretando que tinha sido a preguiça de carregar caixas e não a generosidade a movê-lo. Modéstia, disse a instituição agraciada, ninguém se livra assim de algumas centenas de livros. Modéstia, aceitou pensar de si próprio.
Anos depois descobre-se a contemplar uma fotografia do poeta sueco Tomas Tranströmer em frente às suas estantes. Não lhe é possível imaginar-se naquela posição. Não tem talento nem livros em quantidades suficientes. Algures no passado as suas decisões alienaram-nos (um homem é o resultado das suas opções). Mas não é sobre isto que reflecte. O que pergunta a si mesmo ao contemplar as lombadas do sueco é quem, da multidão que o habita, se desenvencilhou dos livros? O preguiçoso? Aquele que não gosta de viagens de regresso? O tipo que ambicionava morar em hotéis, sem memorabília? Ou o leitor desprendido e solidário?
Pensar nos equívocos convoca a melancolia. Resolve perguntar-se, espreitando por cima do ombro, se não está a crescer desmesuradamente a nova colecção de livros. Se não está, de novo, a expor-se ao risco de ser um cliché fotográfico. Enfim, se não está na altura de mudar de casa.