Se vista da serra, a cidade adormece imergida num mar de nuvens. O noctâmbulo caminha nas suas ruas como se a terra fosse outra, tal a acção do nevoeiro nos objectos, nas formas, na luz, na arquitectura, na atmosfera. Puxa as golas do casaco para proteger o pescoço do frio. O dia amanhecerá gelado; a temperatura desceu e aquele manto branco, que não pretende levantar acampamento, não vai deixar entrar um raio de sol. É quase inconcebível evocar o Verão em tais circunstâncias, mas era isso que o caminhante pensava fazer, o Verão como marco miliário na distância, ponto de fuga da tela onde ele é figurante, éden cíclico aguardado com devoção religiosa. Se a revista conhecida lhe perguntasse como gostaria de morrer diria ligeiramente bêbado à beira de uma piscina. Contudo, pensa no corpo nu sob o astro e não é daí que lhe vem o conforto agora, mas da ténue protecção do casaco, da energia da caminhada vigorosa, do silêncio e da solidão extrema que um banco de nevoeiro pode proporcionar. Os carros e os transeuntes ficam em casa, tementes da humidade silenciosa, ameaça cinematográfica, e os adolescentes deixam a parvoeira para outra altura da semana, não apetece grunhir nem partir garrafas na rua em noites assim. Alguém acendeu uma lareira rústica algures, talvez um fumeiro nostálgico num anexo ou garagem, custa a crer que o lume ou o fumo tenham aquele cheiro na cidade. Decerto lenha trazida da aldeia, depois de uma temporada no alpendre, sabiamente cagada pelas galinhas e pelos gatos e pelos pássaros, curtida pelo sol e pelo vento que se esgueira entre friestas de muros de hortas e lameiros e paredes de combarros. Não, o Verão não permite este alheamento, esta deslocalização, este passear a alma por paisagens distantes sem abandonar a geografia do quotidiano. Não quando se está sóbrio, pelo menos. Pensa que talvez possa descrer do Verão sem cometer heresia. Afinal, tem de recordar que também gosta da chuva quando ela cai em Novembro, gosta de se abrigar como no útero a escutá-la com atenção, ou de levar com as suas pingas enquanto corre, o cabelo empastado e o poliéster do casaco permissivo. E gosta da geada, que deixa o céu todo à mostra, o universo primordial à vista desarmada. Da neve, luzente e também silenciosa, excepto quando estala debaixo dos pés. Não, não é o Verão — são os elementos todos. Isto não é bem uma conversão, embora seja uma epifania: o noctâmbulo é afinal devoto da intempérie como do tempo favorável. Aceita a tormenta e a bonança. Um progresso ou um prenúncio de união panteísta? Lembrança que o pó ao pó volta? A felicidade não mora assim tão longe da melancolia.
*Não, não tem a ver com o (muito recomendável) livro cuja capa e título usurpa.
Sem comentários:
Enviar um comentário