segunda-feira, 1 de maio de 2023

As boas tardes

Cruzam-se comigo na beira-rio algumas dezenas de pessoas e nem uma vira a cabeça para dar as boas tardes. Devo dizer que também não tomo a iniciativa — regressei a Portugal e ao meu modo bisonho.
Reflicto sobre este contraste — depois de duas semanas numa ilha onde, por reacção ou sugestão, cumprimentei certamente mais gente e mais vezes do que em toda a década anterior — quando a mulher do casal desconhecido que se levanta de um banco próximo diz «boa tarde» ao passar e admoesta o filho por não o ter feito. Aquilo, que tinha sido parte da banda sonora dos dias anteriores, soa aqui bizarro.

Um autóctone da ilha anunciara, sorridente, que lá as pessoas eram amistosas, davam sempre as boas tardes. O cliché, de que tantas terras em Portugal se reivindicam titulares e por vezes sem fundamento, era ali uma realidade, vim a descobrir. Os ilhéus nem sempre são os primeiros a saudar, notem, mas quando nos sentimos impelidos a testá-los (e sentimos muitas vezes), reagem sem hesitações e com um cumprimento claro. Não raro, vemo-los de cara fechada, até um pouco hostil, mas se dizemos «olá» obtemos resposta pronta e descobrimos um rosto a abrir-se para a simpatia como uma flor para o sol, a voz amistosa em contraste com a animosidade que suspeitávamos na expressão.

Os portugueses de visita à ilha são também exemplos de jovialidade, simpáticos da maneira que toda a gente é natural ou esforçadamente simpática quando vai de férias, em particular para destinos exóticos. Mas observar o grande espectáculo diário da troca de cumprimentos pode induzir a um espírito ocioso alucinações perturbadas como uma febre tropical, como se um remorso retroactivo de colonizador receasse ver naquela jovialidade tuga uma condescendência remanescente de colono e temesse encontrar na amistosidade natural dos nativos uma herança de brandura forçada, contrária à esperada e justa rebelião. E então o meditabundo acolhe como adequada e sobretudo redentora a fúria da cidadã da ilha que recusa aos brados e insultos ver o seu quintal da frente transformado em lugar de inversão de marcha automóvel, mesmo que nada ali fizesse supor tratar-se de um quintal.

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