segunda-feira, 22 de maio de 2023

«Envelhecer»

The Times They Are a-Changin'
Bob Dylan

— As pessoas? As pessoas não recusam meter uma cunha quando vêem nela a oportunidade de compensarem as suas fracas aptidões e ultrapassarem os outros. As pessoas exigem prioridade e serviços públicos de excelência, mas só não fogem aos impostos se não puderem. As pessoas pagam e recebem luvas com a naturalidade de quem regateia roupas de contrafacção numa feira. As pessoas inscrevem-se em concursos de talentos e não se importam de os vencer apenas com os votos de familiares e amigos, pedindo-lhes até que telefonem para o número indicado ou cliquem na opção certa as vezes que forem necessárias, viciando os resultados… Que ética ou honestidade têm as pessoas? Que amor-próprio? Que carácter? Como poderiam as pessoas escolher dirigentes (em quem de resto votam tribalmente) que se distinguissem pela exigência, o rigor, a honra, os escrúpulos ou a dignidade?

De três em três semanas, fingindo não se sentir obrigada a nenhuma cadência, Lurdes ia buscar o pai ao lar e os dois almoçavam juntos num dos restaurantes da pequena cidade onde antes moravam em família. Aqueles almoços eram apenas mais um absurdo a somar a todos os outros que partilhavam. O pai mal falava, perdido no labirinto das memórias e estudando formas eficazes de abordar a comida no prato com talheres trémulos. Em geral ela também não falava, não mais do que o essencial para que a farsa funcionasse. Ajudava-o a escolher os pratos, repetindo em voz alta a lista que o empregado, dos que ainda tinham sido treinados para tratar cada mesa como um universo fechado, debitava num tom imperceptível para a dureza de ouvido do pai. Não se importava que os outros comensais a ouvissem falar demasiado alto, conhecia as prerrogativas de quem lidava com velhos e gostava de agir com este tipo de pragmatismo, que a fazia parecer decidida. Cortava-lhe a carne se notava que ele ia fracassar e fingir que não tinha fome e acrescentava-lhe legumes no prato e água no copo, não por afecto ou gentileza mas para que a refeição cumprisse pelo menos o propósito de o alimentar. Agia como cuidadora, não como filha. Só quando se deixava irritar por um comentário dele é que agia como filha, como a filha contestatária que fora na adolescência. Mas agora as suas réplicas eram frequentemente um eco das antigas declarações rudes do pai, e dar-se conta disso era um segundo motivo de irritação.

Naquele almoço, o pai, espreitando de viés as notícias no ecrã que ocupava grande parte da parede do outro lado da sala, balbuciara um qualquer lugar-comum sobre as pessoas não merecerem os dirigentes corruptos e oportunistas que tinham e ela pusera-se a falar de virtudes antiquadas, como o teria feito patriarcalmente o velho trinta anos antes, quando para ela eram os vícios e não as virtudes o que interessava. No rodapé passava o apelo ao televoto em mais um dos muitos concursos da actualidade.

— As pessoas não suportam quem se destaque delas por qualidades próprias. Temem tanto que o brilho de outros revele o desbotado delas como que o seu mundo se modifique devido a ideias sofisticadas. Votam apenas em quem demonstre ser banal e oportunista como elas mesmas…

Pareceu-lhe que a seguir ia culpar a democracia e por isso deteve-se. Já chegava de emulação do velho reaccionário que fora o seu pai quando tinha cinquenta anos e ela vinte. A sua própria voz, que por fisiologia era de tom grave, soava-lhe à do pai. Isso tinha-lhe sido útil na criação de uma identidade, quando precisou de o fazer, no final da adolescência. Não era uma mulher fraca fisicamente, mas era mulher, em todo o caso, e essa condição ter-lhe-ia pesado ainda mais se falasse com voz feminina e se se ouvisse esganiçada ou histérica quando tivesse de pôr os rapazes e os homens no seu lugar. Contra as expectativas, achou uma bênção aquela voz grossa, um pouco inesperada, que lhe viria a moldar — achava ela, quando se dava a esse tipo de introspecção autobiográfica — o tipo de sarcasmo em que se especializara.

Havia outras raparigas capazes de deter os avanços inoportunos e indesejados do sexo oposto, mas essas eram geralmente marias-rapaz, com músculos e instintos masculinos, briguentas e grosseiras, de cigarro no canto da boca e mangas arregaçadas à operário. O tipo de raparigas que os rapazes procuravam menos pelas formas do que pela suspeita, não raro acertada, de que toda aquela assertividade era espelho de uma emancipação precoce e se traduzia por isso num maior relaxamento moral e em permissividade.

Ela tomou cedo um rumo inverso no que se referia ao aspecto e às maneiras, exacerbando a sua feminilidade com poses e figurinos inspirados em filmes e revistas de alta-roda; ainda estereótipos, reconhecia, mas de um tipo que as mulheres comuns não se atreviam a experimentar. O quotidiano de uma mulher jovem com fracas posses numa cidade pequena não era, contudo, equivalente a uma passerelle em Cannes — com ombros nus, decotes atrevidos e caudas de cores fortes a varrer o tapete vermelho —, pelo que teve de personalizar um pouco a sua sofisticação, inspirando-se, de Inverno, nos russos que por aquela altura andava a ler e, de Verão, numa ideia de Lolita recatada — uma contradição nos termos, como ela sabia.

Armada de originalidade e literatura, Lurdes encarnou assim perante os olhares dos seus conterrâneos personagens estranhas ao meio e à época, numa atitude de sobranceria punk que era também um contraponto à sua natural timidez. Aqueles que, estupefactos, a viram regressar para o Natal do seu primeiro ano na universidade viram em simultâneo, na mesma pessoa, a primeira condessa russa a desembarcar pelo seu pé no cais da rodoviária, a primeira condessa russa tout court: de carne, osso e pêlo — pêlo no gorro, na gola ampla e nos debruados das luvas e do longo sobretudo vermelho que comprara numa feira de roupa vintage. Os mesmos tê-la-ão visto depois chegar para umas férias de Verão em que usava vestidos estampados, leves e coloridos, mas não curtos, em vez dos jeans que então constituíam o uniforme da juventude, e punha na cabeça lenços à anos 50, em diálogo com óculos da mesma época, ou chapéus em crochet de algodão ou em palha entrelaçada com abas de grande diâmetro. Nos lábios usava sempre um batom vermelho vivo, como um manifesto.

Um visual assim atraía as atenções, exactamente aquilo que um tímido dispensa, mas nela debatiam-se duas forças de igual valor: a noção da sua singularidade, que a fazia desejar uma vida à parte, e a necessidade de afirmar essa mesma singularidade. As roupas eram a um tempo bandeira e escudo, davam nas vistas e desencorajavam aproximações. Mas os excêntricos não evitam ser importunados se não tiverem outras armas de defesa e Lurdes tinha a sua voz, que aprendeu a usar de forma persuasiva, com vocabulário sofisticado e uma expressividade frontal acompanhada de um olhar directo — um conjunto de atributos e mecanismos capaz de surpreender e confundir os interlocutores. Quando falava, parecia uma pessoa mais velha e distante nas suas origens e vivências, fora do alcance da gente comum, dos homens dados ao piropo impertinente ou boçal. Tinha — ou construíra, talvez — algo de uma antiga majestade, que exigia tributo ou estimulava instintos também antigos de um temor serviçal. Não era que as roupas lhe escondessem as formas ou tirassem sensualidade, mas não havia muitos homens à vontade com aquele tipo de mulher: uma mulher estranha e, suspeitavam, duma exigência para a maioria inatingível. Pelo seu lado, os tarados e os violadores comuns preferiam geralmente vítimas com idiossincrasias mais convencionais.

Nos primeiros anos da juventude, as suas escolhas tornaram-na uma pessoa solitária, sem namorados. Na universidade fizera amigos (como sabem todos os seres originais, a fauna é mais diversificada nas cidades grandes e aumentam ali as possibilidades de almas aparentadas se encontrarem), mas na sua própria cidade não se interessava por ninguém e as pessoas em geral pagavam-lhe com o mesmo desinteresse. Na verdade, era um sentimento diferente do desinteresse: as pessoas tinham-lhe ressentimento, o desejo de vingança ou castigo que guardavam para os que desdenhavam a tribo, os auto-suficientes, os que lhes eram superiores.

Quando foi trabalhar e entrou nos quadros de uma empresa internacional de traduções, os colegas irritavam-se com a sua iniciativa e a sua competência e tentavam, com maior ou menor dissimulação, com maior ou menor sucesso, dificultar-lhe o trabalho, denegri-la. Invejavam-na, ainda que não lhe invejassem a dedicação e o esforço e não tencionassem aplicar a mesma energia e gastar o mesmo tempo a melhorar as traduções e a compreender melhor as necessidades dos clientes. Alguns odiavam-na, porque o desempenho dela, que não transparecia dificuldade ou aborrecimento, realçava a incompetência ou o desleixo deles. No dia em que, vencida, deixou voluntariamente o mundo da tradução, deixou também uma multidão de ex-colegas aliviada e um bom punhado de clientes reconhecidos e amigos para a vida. Não desejou melhor tributo.

*

Lurdes levava livros ao pai e costumava dizer, com mordacidade, que ele era actualmente a única pessoa que lia, no conjunto dos seus amigos e conhecidos. De repente, toda a gente começara a agir como se os livros fossem dispensáveis, excepto uns raros velhos que tinham tempo de sobra no dia-a-dia e precisavam de o preencher. Triste epitáfio para a grande criação da humanidade: os livros, outrora considerados instrumentos essenciais para a formação de um carácter e ilustração da sociedade, acabarem como passatempo de pessoas que já nem sequer podiam fazer projectos a partir deles. Os livros como coisa de anciãos, objectos nostálgicos e inúteis, ferramentas já sem uso prático fora das mãos de reformados saudosistas de profissões extintas, adereços de casas musealizadas em vida dos donos. A opção das pessoas neste tempo patético resumia-se, para ela, a ter um cérebro e tentar por todas as formas não o usar, não para mais do que publicar e ver “histórias” fúteis e patéticas no Instagram.

Ela e o pai nunca tinham sido próximos e levar-lhe livros podia ser, de certa maneira, uma forma de aumentar a distância. O velho voltara a ler quando deu por si naquele lar, mas não o tipo de livros que ela lhe passou a fornecer depois de ganhar coragem para a primeira visita, seis meses após o internamento. Ele gostava de livros de História da Segunda Guerra Mundial, biografias, romances rurais com morgados e fidalgos, um ou outro policial, e, ao pretender fazê-lo seguir um plano de leituras diferente, ela não evitara a condescendência. Não o fizera com uma intenção consciente, mas como uma vaga mostra de respeito pela dignidade do pai e com inevitável vício didáctico. Deixava de fora obras de entretenimento e levava-lhe livros respeitáveis do ponto de vista intelectual e alguns ensaios e romances que argumentavam contra as ideias dele. Os livros, deu-se conta mais tarde, eram o território onde ela se imaginara a travar uma guerra por procuração com o velho. Ele tinha-se manifestado feliz com a reeleição de Trump nos Estados Unidos e o «Sim» no segundo referendo sobre o Brexit, e Lurdes, já que tinha agora de conviver regularmente com o pai por ter um sentido do dever castrense (irónica herança genética), achou que podia experimentar mudar-lhe algumas ideias. Que maior demonstração de respeito e interesse poderia ele esperar dela?

No dia em que pela primeira vez entrou no quarto que o pai partilhava com um cavalheiro mais senil viu os seus livros primorosamente empilhados sobre a mesa-de-cabeceira e, no lado mais próximo da cama, uma revista de desafios de sudoku com o lápis pousado sobre um quadro incompleto. Queria aquilo dizer que os livros dela não lhe interessavam e o velho preferia jogos com números? Ou, pelo contrário, ele mantinha aquela pilha tão ordenada e livre de outras obras como se se tratasse de um monumento de consideração à filha?

Aberto sobre a cama, um tablóide congratulava-se em caixa alta com a reeleição de Boris Johnson no Reino Unido.

[Publicado na Grotta n.º 4 (2020)]

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