quinta-feira, 25 de maio de 2023

«Traição»

[A propósito do derby Feira do Livro x Bola.]


Tinha ficado bloqueado naquela canção como um disco riscado. Ela gostava de o levar a passear pela rua enquanto ele a cantava baixinho e lhe apertava a mão. «Will you still need me, will you still feed me…». Tinham muito mais de sessenta e quatro (a esperança de vida em Portugal aumentara desde os Beatles), mas, sim, ela continuava a precisar dele e a alimentá-lo, agora de uma forma literal, a colherinhas de sopa.

Havia um recolher obrigatório — os tempos hoje eram assim — mas ela estava cansada de estar em casa, queria sentir a brisa do fim da tarde, passear de mão dada pela marginal. De modo que ignorou os avisos e fez o que lhe apetecia fazer.

As claques não tardariam a encher as ruas, evidentemente. Era dia de derby, e as autoridades em dias destes faziam questão de reservar o espaço público para os hunos. Faziam-no em nome da segurança e do bem-estar social. E ela tinha de concordar que de um certo ponto de vista era mais razoável para o cidadão comum ficar em casa, sequestrado pelo seu próprio Governo.

Mas não naquele dia. Celebravam cinquenta anos de casados, uma união precipitada no final dos anos sessenta, quando ele confundiu o desejo dela com paixão e ela, que pensara iniciar então uma vida de amor livre e flores no cabelo, se embeveceu com a ingenuidade do futuro marido e acedeu a dizer sim, mesmo que na altura não achasse que aquilo a comprometia de forma alguma. Cinquenta anos em que nem por um dia a banda sonora oficial daquela união improvável («will you still need me, will you still feed me…») deixou de se ouvir. Cinquenta anos era mais do que tinham o presidente e o primeiro-ministro, o par que o país escolhera, talvez num desfile de manequins.

O que era feito dos anciãos, por Deus?

Talvez já não houvesse muitos velhos para além de eles os dois. Aqueles que se lembrava de ter visto contavam-se pelos dedos das mãos. Na verdade não reparava muito no que havia à sua volta. Quando saía só lhe interessava ir sentar-se num banco a ver a foz e a acariciar a mão do marido, que o alzheimer felizmente cingira à faixa certa do álbum, mesmo que ela não apreciasse particularmente o arranjo meio pateta que o McCartney providenciara para a musiquinha.

Ao chegar ao fim da avenida, o tempo começou a mudar e ela arrependeu-se de não ter trazido os abrigos que tinha sempre pendurados no vestíbulo. Mas não se arrependeu de ter saído. Talvez chovesse (havia relâmpagos a cruzar o céu), mas o que era mais romântico do que um passeio à chuva? Com as vacinas haveriam de sobreviver à gripe e a maré viva era um espectáculo que ambos apreciavam.

Sim, estava verdadeiramente excitada com a decisão de ter saído apesar de tudo e todos pretenderem o contrário. Ainda havia alguém no país que fazia o que lhe apetecia e não o que era determinado. E Deus, no caso de existir tal singularidade lá em cima, bem poderia convocar as tempestades que quisesse. Se ela achava que lhe calhava bem um passeio até à foz, vinha até à foz. Feliz por ter o marido de sempre a cantarolar-lhe na sua vozinha querida a melhor declaração de amor.

Depois de se terem sentado a ver a espuma das ondas, a primeira claque passou nas costas deles, bastante desmotivada, quebrando apenas uma ou outra vitrina e incendiando escassos contentores de lixo. Meia hora mais tarde, escoltada pela polícia, veio a insolente claque adversária, com disciplina militar e sarcasmo rufião, entoando o seu conhecido cântico de guerra.

O marido voltou-se para trás, com um sorriso e um dedo hesitante de maestro no ar. Demorou algum tempo a apanhar a melodia, mas depois atacou-a a plenos pulmões — e ela, olhando-o desolada, soube pela primeira vez em cinquenta anos o que era a traição.

RAA 2012
[Publicado no número 10 da revista Fluirem Janeiro de 2023]

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