sábado, 20 de maio de 2023

Hang the DJ

«Ele apareceu minutos depois de eu vomitar e eu beijei-o mesmo assim, meu Deus. Quando acordei no dia seguinte só queria fazer as malas rapidamente e ir-me embora de vez. Era horrível, de manhã ainda sentia na boca o sabor do vómito. Como pude sujeitar-nos àquilo? Hoje admito que até podia ser uma história divertida, mas na altura não a vivi assim.»

Rita falava com a secretária, que era também sua amiga. Raramente contava estas coisas a alguém, não as mencionava ao ex-marido, no tempo em que estiveram juntos. Era uma espécie de pudor mas não era um exclusivo seu. Estava habituada a ler sobre gente semelhante, pessoas que mais depressa se confessavam a um estranho do que à família ou àquele ou àquela com quem partilhavam a cama. Acontecia-lhe com alguma frequência abrir-se com um desconhecido numa festa, ou com o passageiro do lado numa viagem de comboio. Não sentia remorsos por isso, ou culpa. Ou talvez sentisse um pouco disso tudo, mas não ao ponto de pensar em fazer as coisas de forma diferente. Havia aspectos da sua vida interior que não considerava suficientemente ajustados ao património comum de uma relação afectiva. Eram os estranhos ou um psicanalista, mas a isso ela não queria sucumbir. De resto, não havia nada de tão importante que precisasse de ajuda profissional. Eram apenas memórias, acontecimentos, coisas que vivera numa vida distante, noutras vidas, e se às vezes precisava de falar sobre isso era precisamente para o sepultar de novo, o fazer descer à camada certa da sua geologia íntima. Havia por exemplo assuntos de que só falava com a mãe. E outros que discutia apenas com o marido — quando discutir ainda não equivalia àquela espécie de pugilato verbal em que se viriam a viciar.

A secretária não era uma estranha. Mas não havia nenhum estranho à mão quando Rita recebeu o e-mail. Não estava à espera daquilo e sentiu-se empolgada, talvez em excesso — certamente em excesso —, porque no minuto seguinte, ainda mal calculara as implicações daquela mensagem, já estava cheia de vontade de falar das coisas que ela despertava em si. Entre todas as evocações, havia aquela, que se tornava de novo presente e urgente.

«Tínhamos dezoito anos, talvez dezanove, se calhar vinte, e demorávamos metade das férias a chegar à fala», revelou Rita à secretária. «O ritual era o mesmo em cada Verão. Avistávamo-nos à distância e o coração acelerava. Duas semanas depois trocávamos umas palavras, quando nos cruzávamos, e mais tarde umas carícias fugazes, tímidas mas disfarçadas de ousadia. Na véspera de eu me ir embora, lançávamo-nos finalmente nos braços um do outro por escassas horas. A partida era um melodrama.

»Se calhar, devia ter falado a um psiquiatra quando pude. Talvez ainda vá a tempo. Creio que todas as minhas relações com homens foram em certa medida afectadas por aquela. Quase nem houve uma relação, mas não há momento em que eu não pense naquilo. Ponho-me a matutar: o que sei eu sobre o tipo? Alguma vez soube alguma coisa? Amei-o? Senti por ele algo mais do que por todos os rapazes e homens com quem flirtei? Caramba, não me consigo imaginar a ter sido casada com ele, a estar casada com ele. Eu não sei quem ele é, nunca soube. E no entanto ele teve uma enorme influência na minha vida. Frequentemente me perguntei onde estaria ele quando eu estava a fazer qualquer coisa que mo recordava. O que pensaria ele de mim quando aconteciam alterações na minha vida. Concordaria com as minhas opções? Orgulhar-se-ia dos meus progressos? Teria ciúmes dos meus namorados? Levantar-se-ia na igreja quando, no meu casamento, o padre perguntasse se alguém tinha alguma coisa contra? É incrível, mas pensei mesmo isso em frente ao altar. O padre a fazer a pergunta (nem suspeitava de que fosse verdade que eles perguntavam aquilo) e eu a rir-me para dentro e a imaginar o que aconteceria se ele se levantasse lá trás com o dedo erguido e aquele seu ar de Elvis-Presley-de-cigarro-pendurado-no-lábio e dissesse eu tenho coisas contra este casamento. E logo a seguir tive medo de que isso acontecesse, arrependi-me de o pensar, porque não sei o que faria. Não amava pouco o meu noivo, não era isso, mas um gesto daqueles, uma ousadia daquelas, uma cena das que até nos filmes são inverosímeis, se me acontecesse, alterava tudo, não responderia por mim. Quer dizer, se tivesse um minuto para pensar, claro que continuava com o casamento, era o que eu desejava, mas o problema estava na reacção instintiva. Talvez as mulheres não resistam mesmo a cavalos brancos e homens arrebatadores de brilhantina no cabelo, daqueles que aparecem in extremis para as salvar, mesmo quando elas não querem ser salvas nem têm nada de que precisem de ser salvas.

»Sim, também tive fantasias com ele. Toda a minha vida. Tirando o pescoço, as orelhas, ele nunca tocou uma zona erógena do meu corpo, a não ser por engano, de passagem, na confusão dos membros entrelaçados nas raras vezes que nos beijámos. Se lhe forem perguntar, caso ele viva, caso ele tenha existido de facto, não saberá sequer dizer como são as minhas mamas. O meu rabo. Ou como eram. Não houve nenhuma aproximação sexual entre nós. E no entanto à nossa volta fodia-se com relativa liberdade e frequência. Acho que estávamos demasiado ocupados a pensar em outras coisas para nos lembrarmos do sexo, de que ele era uma possibilidade. Claro que o sexo estava na nossa cabeça, como não haveria de estar? Eram os anos oitenta, tínhamos estado em Ibiza (eu tinha estado) e a sida por cá ainda não assustava muito ninguém. Mas já tínhamos trabalho que chegasse com a corte que nos fazíamos, com planear o passo seguinte, antecipá-lo, com entender as reacções do outro. Era uma espécie de xadrez em que, ainda que o ignorássemos, a vitória de um era a vitória do outro, mas ninguém queria arriscar um xeque.

»Não, também não sei com conhecimento de causa como era ele por baixo das roupas. Havia muita gente na piscina do Palácio naqueles anos, ele certamente conseguiria aceder a ela, se o desejasse, mas nunca esteve lá, nunca o vi. Também nunca tentei despi-lo, ou sequer meter as mãos por debaixo das suas roupas. Creio que estávamos, em suma, demasiado absorvidos a imaginarmo-nos perdidamente apaixonados, a ver as coisas exclusivamente pelo lado do amor, um amor idealizado. Platónico deve ser a definição certa.

»De maneira que as minhas fantasias têm pouca matéria com que trabalhar. E se calhar é essa a razão. É o seu carácter de personagem diáfana que lhe dá força: sei o nome dele, tenho memórias vagas daquele tempo — mais nada.

»Eu não bebia muito, não demasiado, mas naquele ano bebi mais do que devia. Tinha passado quase todo o Verão e não o vira uma única vez. Achei que me devia deixar de parvoíces e divertir-me como todos os outros, não se era jovem para sempre. Ou talvez tivesse bebido pela tristeza de não o ver. Sim, claro que foi esta a razão, quem quero enganar? Passavam os dias e ele não dava sinais de vida. Talvez tivesse emigrado, talvez tivesse morrido, quem sabia? Eu não tinha coragem de perguntar.

»Havia uma música dos Smiths onde se repetia “hang the DJ, hang the DJ” e era a minha última noite e eu entrei na pista da discoteca possuída pelas fúrias a berrar aquele curto refrão. Gostava da música, pelo que, de certo modo, era uma injustiça fazer coro de um slogan assim, mas suponho que retoricamente não me importava que se matasse alguém, fosse quem fosse. Não estava era preparada para descobrir que ele era o DJ naquela noite. Eu para ali aos berros a reclamar a morte do DJ, simultaneamente eufórica pela bebida e pela música e infeliz de amores, e o DJ era ele. Os nossos olhares cruzaram-se quando eu rodopiava, e o que vi a seguir a tomar consciência de que era ele foi o meu reflexo num dos espelhos da discoteca. Eu de boca aberta, desgrenhada, braços no ar, escanzelada, sem jeito para aquilo, apenas histérica e demasiado bebida — a pedir que se enforcasse o DJ.

»Corri para o sítio onde tinha o casaco, esvaziei pelo caminho um dos copos de vodka pousados na mesa, e parti, desabrida. Era uma humilhação mostrar-me tão frágil e descontrolada, expor-me assim. Sentia-me como se a minha mãe (não: o meu pai!) me tivesse descoberto a masturbar e a gemer debaixo dos lençóis, ou como se alguém tivesse de repente aberto a porta da casa de banho e uma multidão do lado de fora me visse diligentemente sentada na sanita, cuecas nos tornozelos. Talvez ele nem tivesse reparado em mim — tentei eu apaziguar-me —, mas isso era também triste, porque eu queria que ele me visse, era o que mais queria.

»O ar fresco da noite, que me dava na cara enquanto corria para o Palácio, não teve efeito sobre a embriaguez, a vodka começava a agir sobre tudo o que bebera antes. Cheguei ao portão indisposta, o mundo a girar para um lado e as minhas entranhas para o outro. Precisava de vomitar, mas não tinha coragem de enfiar os dedos na garganta. Sentei-me num dos bancos de pedra que ali havia e creio que adormeci, porque quando voltei a abrir os olhos era muito mais tarde do que imaginava e a Tita e o Mário estavam à minha volta. Vieram descobrir-me ali, depois de terem dado a noite por concluída, não disfarçando o ar divertido enquanto discutiam como haviam de lidar comigo.

»De imediato soube o que tinha de fazer: recompor-me. Mas não me empenhar tanto nisso que evidenciasse a impossibilidade intrínseca do esforço, caindo no ridículo dos bêbados quando tentam passar por gente sóbria. Acima de tudo, mostrar-me divertida com o meu próprio estado. Bebíamos para nos divertirmos, não era? Havia mesmo alguma competição à volta do acto, em certas noites, como se o sucesso das férias se medisse pelo número de vezes que tínhamos ficado embriagados. Todos os outros faziam esta contabilidade, ano após ano.

»A golfada veio quando já me convencera de que apaziguara o estômago. Um jacto só, que no último instante consegui direccionar para as sombras junto ao muro. Encostei-me ali, com a cabeça e a auto-estima para baixo, a escorrer os últimos fiozinhos, e a Tita veio pôr-me um braço pelas costas. Tinha a pele quente, estava ainda afogueada do calor na discoteca e do tanto que deve ter dançado e saltado — em contraste comigo, que estava fria e pálida.

»Os últimos do grupo chegaram nessa altura — e, para minha maior humilhação e susto, vinha entre eles o DJ que eu quisera ver enforcado. Era uma grande alegria e um pânico tremendo, tudo em simultâneo. Ele estava ali, e isso era bom, aquecia-me por dentro. Mas talvez me tivesse visto vomitar, depois de ter visto como eu era má a divertir-me. Oh, meu Deus, quão terrível era ser-se nova e incapaz de relações normais, com rapazes normais.

»Ter esvaziado o estômago deixou-me, de qualquer maneira, mais calma e confiante, e como a embriaguez não desaparecera consegui rir-me alto de tudo aquilo, vivendo a persona como ela devia ser vivida. Mais ou menos. Já vira todos os outros muitas vezes naquele papel, tinha suficiente conhecimento teórico.

»Devo ter parecido sem dúvida recobrada, porque eles começaram a debandar, a caminho do Palácio e dos seus quartos, com tossezinhas e risinhos abafados. Todos suspeitavam de mim e do DJ, e saírem de cena era a forma de se mostrarem cúmplices. A Tita perguntou-me discretamente se eu estava bem, se queria mesmo ficar ali em baixo. Eu pensei: claro que não — mas claro que sim.

»Ficámos sós. Ele não estava muito confortável (não o censuro), mas parecia empenhado naquilo. Um rapaz e uma rapariga num banco de pedra junto ao muro do Palácio, numa meia-luz de candeeiros que se apagavam à vez, quando as lâmpadas aqueciam demais. Havia morcegos em voos baixos e rasantes a desviarem-se de nós no último momento, quando o sonar lhes dizia que éramos maiores do que as suas goelas. Também uma lua cheia, a de Agosto, a última do Verão (Setembro era já no outro lado do país). Certamente grilos e pássaros, o estrídulo circular dos insectos como fundo musical e o gorjeio barroco do rouxinol em primeiro plano — a Natureza impelida a acasalar como num filme de Holywood. Uma noite romântica dessas.

»Na primeira oportunidade, beijei-o. Um beijo como deve ser, com a língua, e as mãos no pescoço. Depois fiquei a pensar na minha ousadia e no estúpida que tinha sido ao fazer aquilo. Era a última noite, eu partia no dia seguinte, e ele, como recordação daquele ano, ia ficar com o sabor do meu jantar regurgitado. Foi um cavalheiro, acariciou-me o rosto no fim do beijo, afastou-me os cabelos dos olhos e teve um olhar apaixonado — enquanto por dentro as suas tripas de certeza se contraíam e ele tentava fechar a válvula do esófago, ou lá onde ela está, sem que cá fora o mundo notasse, eu o notasse.

»Falou muito nessa noite. Talvez me tenha contado quem era, o que pensava, a que aspirava. Talvez me tenha dito coisas bonitas, elogiado o meu corte de cabelo, a cor da minha pele, dos meus olhos, o meu feitio romântico. Talvez isto ou nada disto, não sei dizer. Eu estava obcecada com a ideia horrenda de, em vez de uma troca clássica de fluidos, ter dado a provar os meus sucos gástricos a um homem que não odiava — e ter de viver depois disso. A embriaguez encarregou-se de me fazer esquecer tudo o que ele disse, mas deixou-me viva a memória do que eu tinha feito. Quando acordei no dia seguinte tinha um travo na boca e não era uma figura de estilo nem o sabor dos lábios dele, era a porcaria que tinha bebido e vomitado.

»Quando penso por que me acompanhou aquele homem ou rapaz toda a vida, tão presente como a minha sombra, pergunto-me se esta é uma sina que partilho com certos assassinos (não nos abandona o fantasma daqueles a quem fazemos mal, diz-se). A resposta é não. Pese o final triste (ou cómico, se quiseres), a memória dele é um prazer secreto de que não preciso de abdicar nunca. Que não me desilude. Por isso às vezes penso que quero ser enterrada ali. Quero que ele apareça, como sempre, na minha última noite. Na longa noite.»

2 comentários:

  1. É mesmo assim, são coisas dessas que vivem connosco toda a vida, fantasmas que acarinhamos e usamos quando precisamos, está muito bem descrito.
    ~CC~

    ResponderEliminar