– breve incursão pelos seus prolegómenos e eventuais impedimentos.
Se lemos desprevenidos “O Fim do Homem Soviético”, da bielorrussa Svetlana Alexievich, autora de obras polifónicas que se tecem a partir da transcrição e justaposição de múltiplos testemunhos, podemos ficar surpreendidos com a quantidade de pessoas que ali manifesta saudades do regime soviético e até repúdio pela “democracia” que lhe sucedeu (antes ainda do neoczarismo de Putin). Na década final do século XX, a boa consciência ocidental projectou os seus sentimentos a Leste e imaginou uma Rússia unanimemente grata pelo "fim da história", decretado por um voluntarioso (e americano) Fukuyama. Mas o descalabro da União Soviética significou então para uma parte dos russos uma pobreza talvez maior do que a anterior, sem lhe trazer mais liberdade. Isto porque a liberdade sem autonomia financeira é algo ilusória, e o controlo dos recursos da Rússia não chegou propriamente a estar nas mãos do povo ou de um regime que zelasse pelos seus interesses. Naquele tempo, sob o olhar do Ocidente — toldado por uma bonomia ingénua e irresponsável ou emoldurado por um sorriso complacente, quando não sugestionado pelo cinismo e o oportunismo capitalista —, uma pequena quantidade de “visionários” russos agarrou a oportunidade e agarrou às mãos-cheias os despojos da URSS, fundando com ou sem consciência disso mas sem escrúpulos a oligarquia que hoje é dona abusiva da Rússia.
Da forma como na Rússia muitos viram a História a desenrolar-se, a Perestroika (e o que lhe sucedeu) tirou-lhes o pouco dinheiro que tinham ou aquele que por momentos esperaram vir a ter. Além disso, ou sobretudo, tirou-lhes o que sobrava do prestígio e do orgulho que a vitória na Segunda Guerra Mundial lhes dera e que lhes serviu de agasalho durante a idade do gelo estalinista e a longa geada da Guerra Fria.
É fácil, por isso, se queremos arranjar argumentos para contornar o problema Putin — como há quem insista em fazê-lo —, encontrar uma analogia psicológica entre a Mãe Rússia, ferida no seu brio e escarnecida pelo Ocidente auto-proclamado “vencedor da História”, e a Alemanha humilhada pelos Aliados no Tratado de Versalhes, após a Primeira Guerra Mundial.
Mas compreende-se melhor a invasão da Ucrânia conhecendo também “A Rússia de Putin” (2004), da jornalista Anna Politkovskaya, um regime que é um misto de Estado mafioso e ditadura de género soviético, não um país pronto para ser conduzido ao Armagedon por um führer providencial. Politkovskaya denunciou, com abundantes argumentos, a intensa corrupção e as permanentes violações dos direitos humanos que acompanhavam as movimentações internas e externas das políticas de Putin. E, como que fornecendo-lhe o derradeiro argumento, alguém do perímetro do regime mandou disparar os cinco tiros com que ela foi executada em 2006.
Contudo, se a Rússia de Putin não é a Alemanha de Hitler, é difícil, por outro lado, escapar à Lei de Godwin quando discutimos o que observamos e ouvimos do próprio Putin. É difícil não ver nele uma versão conservada no permafrost siberiano do tipo do bigodinho. Não tendo o mesmo desempenho de histrião nas suas aparições e discursos, o frígido Putin não se revela todavia menos fanático e o seu fantasioso quadro mental e o seu ressentimento não são mais sustentados do que os da besta ariana.
Ao mesmo tempo que governa com um desprezo profundo pelos seus concidadãos (que manda prender aos milhares pelo crime de terem opinião), invoca a protecção das minorias russas ou o regresso das suas terras à Mãe Pátria como razões para anexar territórios e invadir países. Mas ao argumento hitleriano da Rússia humilhada, Putin (acolitado pelos saudosos da utopia comunista que ainda não perceberam que o comunismo na Rússia acabou há muito) junta o da Rússia “ameaçada”. A Europa Ocidental, na transição do século, conquistou de facto território outrora sob a pata da URSS e aproximou paulatinamente as suas fronteiras, e com elas as da NATO, às da Rússia. Mas a Europa não conquistou esse território militarmente, antes coquetemente, pela sedução natural dos seus atributos: uma prosperidade relativamente pacífica e livre. As nações da cintura da ex-URSS não se sentiram conquistadas no sentido bélico, mas no sentido passional. Desejavam a vida europeia e voluntariavam-se ardentemente para a viver. O verdadeiro pecado da Ucrânia não foi atentar contra o Donbas russófilo (ainda que possa ter atentado), mas não querer mais o abraço incestuoso e de urso peludo da irmã Rússia.
Este “charme” europeu, a que a linguagem castrense da política e dos media preferiu chamar soft power, por contraponto ao hard power das botas cardadas americanas, corrompeu-se, no entanto, impedindo uma versão mais benevolente do primeiro quartel do século XXI e quiçá de todo o futuro — e abrindo a porta aos argumentos putinescos —, quando alguns líderes europeus, ao arrepio da vontade dos seus próprios povos, resolveram dar cobertura ao acto caprichoso de um presidente americano que decidiu, com a mesma prepotência fútil e semelhante falsidade de argumentos, invadir o Iraque.
Aquilo que a cimeira dos Açores significou para o resto do século XXI (com mais alguns passos em falso posteriores) foi um golpe na frágil expectativa das boas intenções, senão ocidentais, pelo menos europeias. De galã desejado e honrado, o Velho Continente voltou a ser visto como um gigolô que anda à boleia e se aproveita ilegitimamente de outros países. Não admira que mesmo dentro de fronteiras muitos vejam assim validada a sua teoria (habilmente aproveitada por Putin) de que a NATO não representa a legítima defesa de um bloco de países mas uma desnecessária ameaça a uma nação apesar de tudo nobre e sobretudo depositária de uma saudosa glória.
Não será quiçá suficiente para deter os ventos de guerra, mas valerá a pena ilibar o povo europeu no tribunal da História recordando que, da mesma forma que agora se manifesta contra a invasão da Ucrânia, se manifestou então contra a Invasão do Iraque.
A Terceira Guerra Mundial, se aceitarmos o pessimismo proposto pelo título deste texto, está por enquanto adiada, à custa da Ucrânia, como a Segunda o foi à custa da Checoslováquia. Há talvez algo de chamberlainesco, de adiamento, na forma como se procura evitar o envolvimento de meios da NATO na protecção da população civil ucraniana, mas isso não é necessariamente um erro. Talvez Chamberlain precise de ser reabilitado, como de alguma maneira o tentou fazer o filme “Munique: À Beira da Guerra”, pondo-o no papel de alguém que prefere ficar mal na História e adiar a guerra para quando a Inglaterra a possa travar. É certo que a História nos diz que ele podia ter preparado a Inglaterra mais cedo, mas a História é escrita pelos vencedores e no caso da Segunda Guerra Mundial foi-o tão estritamente que o seu autor, Churchill, até recebeu o Nobel da literatura por tê-la escrito.
O adiamento que aqui se valida não é o que permita aos antagonistas da Rússia de Putin prepararem-se para a guerra (ainda que tal seja prudente), mas o que permita que os conterrâneos do neoczar o derrubem. Não vale a pena, na era nuclear, tentar perceber até que ponto um Putin acossado é igual a um Hitler acossado. Vale a pena, sim, ter a opinião do mundo e sobretudo a opinião dos russos contra o déspota que os governa. Adiemos o momento de fornecer poder balístico à Ucrânia, mas forneçamos argumentos de rebelião ao povo russo. (A munição para um sniper também serve.)
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