sexta-feira, 11 de março de 2022

Get back

Quando nasci, os Beatles estavam a acabar, e, quando aprendi a tocar viola e sonhei com outros as minhas primeiras bandas, a música deles ainda vigorava por todo o lado mas simultaneamente pertencia já ao Olimpo e os quatro de Liverpool eram como deuses gregos, inalcançáveis, insondáveis. Quando, a mim e aos que tocavam comigo, nos veio parar às mãos um livro com as letras e os acordes de centenas de canções dos Beatles, usámo-lo como certos religiosos sinceros e ávidos de Mistério usam a Bíblia: com profunda devoção, sentindo a latência do Divino, acreditando estar ali, naquelas páginas, o segredo da Vida. Paul, George e Ringo ainda por cá andavam a fazer música, a gravar videoclipes e a dar concertos, mas isolados não exerciam um décimo da atracção que continuava a exercer o quarteto, claramente maior do que a soma das partes. Dei pouca atenção às carreiras a solo dos ex-Beatles, não exactamente porque a música deles fosse despida de interesse, mas talvez, penso agora, porque elas os humanizavam, faziam-nos descer do pedestal, tornavam-nos mais próximos, e talvez isso me causasse um certo ressentimento, uma certa mágoa perversa: os deuses não existem na mesma dimensão dos humanos e, se os Beatles tinham acabado, talvez os seus elementos não devessem ter sobrevivido e continuado a fazer música. O lugar deles era o do mito e por isso deviam ter-se esvanecido antes de eu crescer e compreender o mundo. Não necessariamente à força da bala, como John Lennon, mas tornando-se de um modo indolor abstractos, imateriais como a palavra “Beatles”.

Há poucos anos vi numa qualquer cidade da Europa um cartaz gigante a anunciar um concerto de Paul McCartney e nem por um momento senti o impulso de comprar um bilhete. Em contrapartida, Peter Jackson desencantou horas de filmagens dos dias de criação de “Let it Be”, os Últimos Dias da Criação (é adequado dizê-lo em maiúsculas dignitárias, a um tempo genesíacas e escatológicas), e montou o documentário “Get Back” — e as minhas noites nunca mais foram as mesmas. Lázaro regressou dos mortos e eu tornei-me um morto-vivo. Noite após noite, o YouTube apanha-me nas suas garras com excertos do documentário, que se encadeiam uns nos outros e me prendem horas a fio. O inimaginável aconteceu, aquilo que na minha adolescência tanto tinha desejado, sabendo ser impossível (ver os Beatles na intimidade, na intimidade do processo criativo), está agora ao alcance de um clique, integra a rede como qualquer outra das banalidades contemporâneas com que o algoritmo procura controlar-me os dias. Mas, ao contrário das outras fontes de vício, ao contrário dos vídeos dos eighties que a espaços também me fazem gastar tempo, não vejo “Get Back” imbuído de nostalgia geracional. Não só porque a minha não é exactamente a geração dos Beatles, mas sobretudo porque ver John Paul George & Ringo a interagir e a criar é como ter de súbito acesso aos aposentos privados dos deuses, mas não através dos textos duvidosos de Homero ou Ovídio, antes como se a máquina do tempo tivesse acabado de ser inventada e com essa invenção se revertesse a outra, a dos deuses, tornando-a realidade, facto; como se os deuses deixassem de ser mitos e passassem a ser verdades testemunháveis — mantendo-se a sua existência, contudo, num adequado plano sobre-humano. É com puro fascínio que vejo e revejo em “Get Back” as canções a surgirem, meros esboços, indícios do que depois foram obras-primas e marcos miliários na minha formação pessoal. É com pura comoção beatífica que vejo os quatro de Liverpool no processo de criação, com acertos e desacertos, arrufos, por vezes indiferença, sobranceria ou desdém injusto uns pelos outros, mas de súbito empolgados e sintonizados, fecundos, no rooftop de “Get Back” como no topo do mundo, criadores do próprio mundo que lhes sobreviveu, o meu mundo.

Pensando bem, suponho que é afinal também com nostalgia que vejo os pedaços de “Get Back”, mas nostalgia de um outro tipo, uma nostalgia de outros acontecimentos, que não foram indiferentes à pré-existência dos Beatles mas não se lhes referem. Naquelas horas de “Get Back” vejo também o adolescente que fui, a ânsia de criar canções, de fazer arranjos para músicas que só nós víamos como possibilidades, escrever letras que pudessem encontrar a canção que de certeza havia de lhes corresponder. Em “Get Back” vejo as jam sessions intermináveis e incipientes, que raramente davam alguma obra que valesse a pena para alguém que não os que ali estávamos a tocar, mas que em cada minuto que duravam pareciam aproximar-nos de alguma coisa mais do que a vida terrena, pouco original, quase banal que vivíamos. É como se “Get Back”, ao invés de lembrar a inveja que justamente estávamos condenados a ter, redima aos meus olhos o que tinha dado como tempo perdido. Não porque tenha resultado muita coisa de que me orgulhar daqueles anos em que o meu papel era sobretudo cabotino, mas porque me lembra o sentimento de transcendência que eles me proporcionaram.

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