terça-feira, 29 de março de 2022

Ridendo castigat mores

Ridendo castigat mores. Talvez esta fosse uma boa divisa para os humoristas. «Rindo, castiga os costumes» ou «castiga os costumes rindo». Mas podia ser também uma bússola, um instrumento de orientação. Não apenas uma ferramenta para definir o método (rir, ou zombar) e a intenção (castigar, censurar, desmascarar, ridicularizar), mas ainda, o que é mais importante, o âmbito, o alvo: isto é, os «costumes»; ou seja, os hábitos, as práticas, os modos de proceder, ser ou estar.

Dentro deste espírito, é mais interessante e útil gozar com as palavras e as acções de Trump do que com o seu cabelo. Mas não é ilegítimo gozar com a trunfa trumpista, porque tudo naquela cabeça é opção do portador, ele não nasceu com tal molhelha nem ela lhe cresceu por determinação genética. O mesmo se aplica ao revestimento capilar de Boris Johnson: aquele despenteado não é um azar do destino, uma inaudita tendência para atrair golpes de vento, mas algo com assinatura e gosto pessoal. Já gozar com Marques Mendes por ser baixinho ou ridicularizar Santos Silva por ser careca são piadas preguiçosas e sobretudo inúteis, visto não tocarem em nada por que eles sejam responsáveis, nada que traduza o seu ideário ou o seu modus faciendi. Ninguém decide ser baixinho ou escolhe deixar cair o cabelo (rapá-lo é outro assunto). Ninguém cultiva uma determinada estatura como estilo pessoal, assim como ninguém, excepto os franciscanos e um ou outro freak, é glabro no cocuruto para afirmação de uma personalidade, uma atitude ou uma ideia. A herança não é um mérito e a herança genética não é uma culpa.
O que as pessoas fazem com as suas características físicas naturais, sim, pode entrar no âmbito da divisa ridendo castigat mores, mas apenas ser portador delas não devia ser espoleta de humorista. Sobretudo quando padecer de determinada característica física é já um castigo para a pessoa.

Dito isto, o riso não tem de ser meramente utilitário, e uma piada preguiçosa, sem imaginação, inútil, de mau gosto ou insensível não é justificação para a violência (caso contrário muitos shows de stand up comedy teriam forçosamente de ser ringues de boxe). O castigo para uma má piada, se tiver de haver algum, não é um tabefe, mas uma expressão glacial e um silêncio sepulcral. Uma audiência fleumática é o pesadelo de um humorista e seria justo que alguns a tivessem. 
O que não é justo é silenciar alguém à estalada.

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