quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A fleuma real

Os comentadores falam da capacidade (e dever) que Isabel II tinha de não exprimir emoções, de não mostrar estados de espírito, de se manter absolutamente opaca e neutra perante os solavancos e as transformações do mundo. E falam desta vocação para a impassibilidade como de uma virtude. A fleuma extrema, não como característica étnica, mas requisito de estado.

Como se explica então que os súbditos a amassem e o mundo a admirasse? O que é que amavam e o que é que admiravam? O vazio? O deixa andar que não é nada comigo? (Conheço muita gente que cumpre lindamente estes critérios e ninguém, por enquanto, lhes pôs uma coroa na cabeça.)

Como se pode amar uma figura plana, sem dimensão emocional? Como se pode admirar um chefe de estado que não participa, nem como árbitro, nos processos políticos do seu país? Pelos filmes do James Bond em que entrou?

Diz-se que, quando o Reino Unido se preparava para referendar a sua permanência na UE, ou seja, se preparava para alterar uma parte da sua identidade e perturbar o xadrez político da Europa, a rainha apareceu num evento público trajada de azul-UE, o que alguns entenderam como uma subtileza política e outros apenas como resultado aleatório da pesca matinal no rainbow closet (o compartimento onde se guardavam os tailleurs da rainha, dispostos em pantone como nas lojas CIN). Não se lhe tendo conhecido um pronunciamento mais assertivo ou sequer um apelo à reflexão sobre o destino do seu próprio reino naquela encruzilhada, podemos deduzir que à rainha era indiferente a escolha política desde que pudesse continuar a sucessão dos dias com as suas alternâncias de cor e as transferências do orçamento de estado. Mais do que personificar uma nação ou um reino, parece-me que a rainha personificava (sem ironia, claro, que lhe estava vedada) as variações cromáticas de Andy Warhol. Era tão bidimensional e desinteressante quanto as telas em série que a representavam.

Os entendidos da monarquia ou os amantes de fatos de tecido e corte britânico (que são mais ou menos o mesmo grupo) dir-me-ão, zangados e paternalistas, que a rainha, mais do que um chefe de estado, é uma presença tutelar, uma figura que representa a linhagem, a continuidade e, naturalmente, a fibra de um povo. Desempenha mais ou menos o papel fantasmático dos retratos de tetravôs em paredes de tabique ou dos totens esculpidos e venerados de certas tribos, das estátuas de deuses orientais ou pagãos, o papel da Virgem Maria num muro de jardim católico ou da múmia de Lenine na Rússia. Por este prisma, creio que mandá-la embalsamar seria uma ideia mais coerente e eficaz do que passar a coroa ao filho. Não há nada de mais fleumático do que a obra de um taxidermista.

Mas talvez as pessoas a amassem como os patriotas e as crianças amam uma bandeira, fascinados com as cores e o drapejar. E assim, na impossibilidade legal e ética de prender o príncipe Carlos a um mastro pelo tempo do seu mandato, talvez os britânicos pudessem simplesmente arvorar um dos seus jaquetões vermelhos de cerimónia e aclamá-lo rei. Ao jaquetão.


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P.S.: Se a imperturbabilidade da rainha explica o sucesso da Inglaterra nos últimos setenta anos, proponho que em Portugal se eleve com urgência um bibelô a presidente da República. (A hipótese múmia revelou-se inadequada, sobrava-lhe em lata o que lhe faltava em fleuma.)

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